Página Inicial · Blog · Laboratório de Crítica em Circo : As Voltas que o Mundo Dá
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Por Adriana Reis*

Uma pausa para apreciar a arte. Olhares atentos se voltam para o palco. Em pé, ao fundo da plateia, um rapaz de pele morena e roupa surrada esquiva-se do cansaço de um dia que se despede. Equilibra sobre os ombros os malabares que já foram brancos, mas que agora ostentam um acabamento amarelado, arranhado e descascado, sinais de sua história. Concentrado, o menino se soma à plateia que observa e estuda cada movimento da trupe, em sua sequência de números circenses.

Uma apresentação a céu aberto, realizada em um picadeiro reinventado, que une pela primeira vez a Cia. K. e o grupo musical Cia. Cabelo de Maria. Trata-se da estreia do espetáculo no Festival Internacional Sesc de Circo e o local escolhido é a praça de convivência do Sesc Campo Limpo, na região sul da capital paulista. A iluminação de palco vem exclusivamente do pôr do sol.

O casal de palhaços Serafim e Serafina dá as boas-vindas a uma plateia eclética, encantada e generosa. O riso das crianças é mais solto e reverbera, contagiando artistas e plateia. “As Voltas que o Mundo Dá”, o título do espetáculo, é um convite à reflexão. Uma pausa no cronograma habitual da vida para entrar num outro ritmo, dirigido não mais pelo relógio, mas pelo tempo da arte. Serafim e Serafina discutem, eles também, sobre suas escolhas. Ela está inquieta e quer partir em busca daquele tal “algo mais”. Serafim, ainda que contrariado, acompanha a parceira. Cômico ou melancólico?

E é nesse partir, nesse caminhar por aí que eles descobrem um mundo novo; deparam-se com os encontros quase ocorridos, os amores possíveis que são impedidos pelo fator “quase”. É nesse contexto poético que a arte circense acontece. A artista no trapézio é, agora, a moça na janela, à espera da cara metade. Na ânsia por sua busca, aflitiva, não enxerga a oportunidade que está ali, tão próxima, separada por um punhado de jujubas jogadas no chão.

Em outro número, o circo flerta com a dança. A sonoridade dos Bálcãs e a música cigana pautam os movimentos do grupo, em uma virtuosa demonstração de elasticidade coreografada. A moça se deixa carregar, como se abdicasse do controle sobre sua própria vida, em nome de uma força maior – Destino? Divino?

A cada troca de números, Sefarim e Serafina se fazem presentes em seu contínuo caminhar, causando no espectador uma interrupção da sensação inebriante provocada pela arte em seu estado puro. Talvez essa costura proposta pelo casal de palhaços pudesse ser dispensada no espetáculo, deixando que a linguagem circense, por si só, construísse essa narrativa que configura o constante girar do planeta, os altos e baixos, as idas e vindas da vida. Condição diante da qual ninguém fica ileso, nem mesmo os músicos do elenco, que ali não são coadjuvantes, pois eles também são artistas circenses, integrando um número aéreo, sem, contudo, deixar de executar suas canções.

Seguindo sua jornada, Serafim e Serafina chegam, por fim, ao destino o qual nem mesmo eles sabiam previamente. E de tanto girar, de tanto procurar, surpreendem-se pelo fato de terem chegado ao ponto de partida. Mas não, isto não é um retorno, pois aquele que partiu volta modificado. Disposto a assumir um novo olhar, ainda que a realidade pareça estranhamente a mesma de antes, de sempre. E se as tais voltas da vida são inevitáveis, resta perguntar a razão pela qual se insiste em manter controle sobre elas. Seria, tal qual Dom Casmurro, o desejo de atar as duas pontas da vida? Criar um sentido para a própria existência?

Os aplausos sinalizam que o espetáculo chegou ao fim. A pausa foi breve, porém inspiradora. Acompanhando o movimento do público, o menino dos malabares dá um último sorriso e retorna para seu trabalho. Segue para o cruzamento de avenidas não muito distante dali e retoma sua própria apresentação de habilidade, para uma plateia não tão atenta, não tão interessada, fechada em seus automóveis, aguardando um sinal verde para prosseguir.

Como parte das ações formativas do festival, o Laboratório de Critica em Circo propôs atividades teóricas e práticas visando ao participante a ampliação do repertório de vocabulário, estéticas e conhecimentos sobre a atividade circense. 
O texto acima, elaborado por um dos participantes, é resultado desse trabalho.

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