Sesc – Circos 2017 http://localhost Festival Circos 2017 Wed, 09 Aug 2017 17:24:23 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.13 Uns fazem palhaçadas; outros, palhaçarias http://localhost/blog/uns-fazem-palhacadas-outros-palhacarias/ http://localhost/blog/uns-fazem-palhacadas-outros-palhacarias/#respond Wed, 26 Jul 2017 16:46:18 +0000 http://localhost/?p=4044/ O post Uns fazem palhaçadas; outros, palhaçarias apareceu primeiro em Sesc - Circos 2017.

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Mario Fernando Bolognesi


Julgava que palhaço fizesse palhaçada. Foi o que sempre ouvi e assisti. Mas, de uns tempos para cá, alguns passaram a dizer que faziam palhaçaria. O que teria mudado? Deve haver alguma razão para tal. Coloquei-me a campo para investigar o ocorrido.

A primeira pista me levou ao termo “clown”, alglo-saxão de origem, também adotado pelos franceses, ferrenhos defensores do idioma pátrio. Teria ocorrido um descuido por parte dos franceses? Não. Historicamente, os clowns ingleses dominaram os picadeiros e palcos parisienses no XIX , consolidando um modo de comicidade. Com isso, o termo perdurou.

Os franceses, por seu turno, dizem que a arte dos clowns chama-se “clownerie”. Tá aí: palhaçaria vem a ser a transposição do francês para o português. Efeitos inconscientes da colonização cultural? Por que não clowneria? Não fica bem escancarar a transposição idiomática à revelia do que predomina no português.

Por aqui, em ambiente de latinoamérica, palhaço ou payaso, são termos ainda pertinentes e de apelo popular (muito embora alguns rejeitem tal denominação e fazem questão de serem chamados por “clowns”). O mesmo não ocorre com a palavra “palhaçada”, que, no adjetivo, traz carga semântica pejorativa. Por que não substantivar? Se isso ocorresse a arte do palhaço seria chamada de palhaçada, pura e simplesmente.

Ocorre que o problema ultrapassa a adaptação terminológica – desconfiei, então. Mudanças também ocorreram na tipologia da personagem (há quem defenda não se tratar de personagem – mas isso é assunto para outro momento!), no repertório adotado e na postura profissional diante daquilo que se faz.

No tocante aos tipos cômicos – assim me parece – houve um retorno à polarização augusto-branco, algo que o fazer circense, desde os primeiros anos do século passado, avançou ao incorporar o contra-augusto (e, por decorrência, o tony em campos latinos), síntese que mantém e supera a dicotomia branco e augusto. Nos picadeiros latinoamericanos o contra-augusto predomina.

Os fazedores de palhaçarias tendem a buscar um novo repertório. Para bom entendedor, significa dizer que eles rejeitam o repertório herdado da tradição que – deve-se enfatizar – está em constante modificação, dado o predomínio da improvisação no trabalho dos palhaços e seu intuito de conquistar e agradar ao público. Contrapondo-se a isso, os clowns optaram por criar enredos e espetáculos com rigorosa marcação de cenas e movimentos, ao sabor das diretrizes do espetáculo teatral enclausurado entre quatro paredes. Assim, o tom comunicativo do cômico de picadeiro, ancorado na triangulação, cede lugar à expressividade da cena teatral. O público, então, é induzido à quietude contemplativa.

Resultado imediato dessa postura é o caráter autoral que rebate nos direitos de criação, que passa a ter um proprietário intelectual e particular, enquanto o repertório herdado é coletivo e público. A economia do mercado criativo caminha a passos largos também entre os fazedores de palhaçarias.

Coloco os termos em polaridades para enfatizar modelos distintos – e por vezes antagônicos – de se exercer a arte de palhaço. Exemplos nuançados, que navegam por essas duas águas, são muitos. Mas, não se trata aqui de olhar exemplos concretos, mas sim tendências que se manifestam na atualidade. Isto é – e se eu não estiver equivocado – os fazedores e defensores da palhaçaria aproximam-se do caráter estético, naquilo que o termo carrega de mais elitista; os que fazem palhaçadas apoiam-se no fazer profissional atrelado a uma atividade comercial, cujo critério não é a beleza e o belo, mas sim o eficiente, comunicativo, enfim, o que agrada ao público.

O vasto público popular, do picadeiro, das ruas e das praças da América Latina sabe muito bem o que é a palhaçada. Quanto à palhaçaria, a se insistir no termo e em tudo o que ele implica, há muito trabalho para a sua consolidação. E o principal: ter consciência de que a palhaçaria se direciona a um público educado na recepção do espetáculo. A palhaçada não requer tal iniciação.

Mario Fernando Bolognesi
Professor Titular (aposentado) da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, UNESP, Campus de São Paulo (SP). Bolsista em Produtividade e Pesquisa, nível 2, do CNPq. Doutor em Artes/Teatro pela Universidade de São Paulo, USP. Dedica-se ao estudo dos palhaços, da comédia e do cômico circense.

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Um ensaio sobre a suspensão http://localhost/blog/um-ensaio-sobre-suspensao/ http://localhost/blog/um-ensaio-sobre-suspensao/#respond Wed, 26 Jul 2017 16:42:27 +0000 http://localhost/?p=4047/ O post Um ensaio sobre a suspensão apareceu primeiro em Sesc - Circos 2017.

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Alluana Ribeiro


Mãos calejadas, abdômen tonificado, asas largas, pés fora do chão. Suspenso, o acrobata aéreo treina seu corpo e espírito. Seja em um trapézio, lira ou corda, a sua bacia precisa levantar, girar e aterrissar em segurança. Para isso ele pratica, insiste, resiste à pressão. Treina para desenvolver as potências de seu corpo,  “a capacidade de se afetar corpo” [1] e agir. Em um espaço de contornos ar-riscados, ele realiza figuras que desfiguram seu próprio corpo.

Desde a criação do circo moderno no século XVIII, os acrobatas aéreos encenam a suspensão de seus corpos. Mesmo com as mudanças pelas quais o circo passou até hoje, aproximando-se de outras artes, a suspensão permanece sendo sua principal característica.

A escrita deste ensaio foi movida pelo desejo de refletir sobre este corpo suspenso que resiste às tentativas de conceitualização, mas que hoje está muito longe do puro divertimento, e se apresenta, em seu hibridismo, aberto para uma série de questionamentos. Mesmo que ainda seja difícil de definir e que se preste a interpretações contraditórias, ele é concretamente moldado, todos os dias, pelos seus artistas. Ele informa sobre seus gestos e seu estar no mundo. É a sua experiência que, por um instante, o funda[2]. Seria a suspensão uma propriedade do corpo circense que, atravessando o tempo, poderia contribuir para uma definição do que seria um “corpo circense contemporâneo”?

O risco no circo pode se referir às situações experimentadas durante o treinamento e apresentações, mas também às que o circense enfrenta no seu dia a dia. O risco estabelece uma relação própria do circense com seu estar no mundo. Ele é : a) físico – proveniente de seu embate com a matéria,   b) político-social – ligado à relação instável que estabelece com a sociedade e suas instituições , c) afetivo – consequência subjectiva do contato com experiências arriscadas, d) de linguagem ou estético – traço de uma composição que lhe é própria. Afinal, é impossível dissociar a prática do circo da própria vida. Não há separação. “A exposição ao risco, se induz ao perigo, engaja os mecanismos consecutivos a um colocar-se em desequilíbrio a si próprio” [3].

O artista aéreo dedica-se à suspensão com uma determinação absoluta. Articulação por articulação, músculo por músculo, ele prepara seu corpo. Presta-lhe homenagem. É frequente vê-lo nas salas de aula, ensaios, camarins, isolado, cumprindo um pequeno ritual. Antes de shows ou treinamentos que oferecem riscos, sussurra uma espécie de prece na qual pede a seu próprio corpo para que fique junto dele. Não há Deus para protegê-lo nem condená-lo. Há apenas espaços divinos à sua volta dos quais ele toma posse. Seu universo metafísico não ultrapassa o corpo. Ele mesmo se experimenta enquanto infinito.

A figura no circo (também como conhecida como truque ou proeza) é um acontecimento que requer um engajamento total do corpo na experiência. Realizada na redoma sensorial extraordinária[4] proposta pelo espaço suspenso, ela é infinitamente breve e está ligada a uma superação de si. Esteja suspenso por cordas, por um tecido, um trapézio, ou pela mão de um parceiro, o acrobata aéreo experimenta na pele uma realidade instável na qual as referências são outras e os apoios, restritos ; ele então adapta-se a essa realidade através da realização de (des)figuras. É justamente nesse espaço liso que ele se refaz; neste não-lugar que não se esgota e não se conclui.

A suspensão, no caso dos circenses, assim como no caso de Artaud, não é um vazio infinito, um descompromisso. Ela é repleta de acontecimentos de ordem corporal e afetiva. Para tanto é preciso engajar- se, liberar o corpo, “os órgãos”, segundo Artaud, de um condicionamento que lhes foi imposto.“Eu me faço suspenso”, dizia, “sem inclinação, neutro, preso em busca do equilíbrio das boas e das más solicitações” [5]. A suspensão abre uma lacuna que não é necessariamente positivada, preenchida. Ela sustenta o não-lugar como possibilidade de existência. Mas este vazio com o qual o circense trabalha não é o nada. É antes uma virtualidade que contém em si possibilidades ilimitadas de se fazer corpo e discurso.

De alguma forma a sublimidade do acrobata aéreo, seu caráter de anjo, como define Fabienne Arvers, é fruto de um intenso engajamento físico. Meta físico. Através da física eleva-se sobre o risco de um vazio. Trabalha, na carne, suas possibilidades de suspensão. Trata-se de uma metafísica da carne ou uma física primeira que opera no corpo do circense e que o leva a ir sempre mais longe numa vertigem que nada pode deter. Nesse sentido podemos partilhar da ideia de Philippe Goudard: o corpo do artista circense é sacrificado pelo desejo de elevar-se.

Bibliografia:

ARTAUD, Antonin. Oeuvres. Quarto. Paris: Gallimard, 2004.
GOUDARD, Philippe. Arts du cirque, Arts du risque : instabilité et déséquilibre dans et hors la piste. Montpellier: ANRT, 2005.
GUY, Jean-Michel. (dir). Avant-Garde, Cirque! Les arts de la piste en révolution. Paris : Éditons Autrement, Collections mutations, no 209.
PIRES, Ericson. Cidade Ocupada. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2007.
VEIGA, Guilherme. Ritual, risco e arte circense. O homem em situações-limite. Brasília: Editora UNB, 2009.

[1] PIRES, Ericson. Cidade Ocupada. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2007, p.11.
[2] GUY, Jean-Michel. (dir). Avant-Garde, Cirque! Les arts de la piste en révolution. Paris : Éditons Autrement, Collections mutations, no 209, 2001.
[3] GOUDARD, Philippe. Arts du cirque, Arts du risque : instabilité et déséquilibre dans et hors la piste. Montpellier: ANRT, 2005, p. 280.
[4] Este conceito foi desenvolvido por Guilherme Veiga no livro Ritual, risco e arte circense. O homem em situações-limite. Brasília: Editora UNB, 2009.
[5] ARTAUD, Antonin. Oeuvres. Quarto. Paris: Gallimard, 2004, p. 125. (Tradução livre)

Alluana Ribeiro Barcellos Borges
Artista de circo, possui graduação em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2007), é Mestre em Estudos de Literatura e Cultura na mesma instituição e suas pesquisas atuais são sobre o corpo e as artes do circo contemporâneas a partir de uma releitura da obra do escritor Antonin Artaud. Alluana é co-fundadora e artista na Cia Sôlta (FR/BR) desde 2012.

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Que circo é esse? http://localhost/blog/que-circo-e-esse/ http://localhost/blog/que-circo-e-esse/#respond Wed, 26 Jul 2017 16:39:46 +0000 http://localhost/?p=4049/ O post Que circo é esse? apareceu primeiro em Sesc - Circos 2017.

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Raquel Rache de Andrade


E a geografia, com certeza, me ajudou muito. A primeira vista, eu conseguia diferenciar a China do Arizona. Isso é muito util, quando estamos perdidos na noite.

Essa citação do Pequeno Principe de Antoine de Saint-Exupéry nos leva à refletir sobre a questão da fronteira, do limite.

Entidade fisica, abstrata ou juridica, a fronteira define um espaço de espessura variável que separa dois territórios, que constitui uma espécie de horizonte, de limite. Se a noção da fronteira tem, à primeira vista, um significado político, ela também pede à imaginação que olhe mais longe que sua linha de demarcação, o que nos leva imediatamente à pensar em formas de transgressão. Assim, como limite, ela desperta ao mesmo tempo a proibição do que ela criou.

« Na arte, nenhuma fronteira. » citação de Victor Hugo. Na arte precisamos, necessitamos ou queremos questionar barreiras, limites, fronteiras, para poder inventar, criar ou simplesmente investigar o que existe do outro lado do espelho, do outro ponto de vista.

Essa abertura é simples quando somos crianças, as fronteiras e limites vão sendo dadas e aprendidas com o passar do tempo. Aliàs, muitas vezes no momento de criação de um espetaculo de circo , o artista busca esse estado infantil, de abertura ao outro, ao mundo, de liberação de fronteiras, de desconhecimento de limites, pois é justamente na diluição das fronteiras, dos limites, que a mistura e o possivel existem.E quem sabe o impossivel ? Ao mesmo tempo o artista se depara com uma contradição enorme, pois deve adicionar ao momento interno caotico (liberação de limites), o fato de ter que criar um espetaculo com um tempo preciso e um publico preciso(limites).

O que leva o artista de circo muitas vezes à experimentação do caos. E essa experiência pode ser fértil. A ordem pode nascer do caos, da confusão, da desordem, e se o caos pode incomodar regras pré estabelecidas numa sociedade, é através do caos que a dialética da arte pode ser criativa . Essa é uma das bases da criação e da evolução criativa.

As vezes de forma caotica, o circo inclui tudo que é diferente, tudo que pode criar um interesse visual, auditivo, olfativo. Por isso o circo deu forma à expresssões populares : « que circo é esse ? » « isso aqui ta parecendo um circo ! ».

Mas o que é interessante no circo é que ele é a antitese dele mesmo, pois mesmo se temos a impressão de que a realização é caotica, tudo acontece com muita precisão e muito ensaio.

Reais, imaginarias, flutuantes , intimas e politicas, as fronteiras unem alguns e separam outros. Com a chegada da internet o mundo ficou mais complexo nas noções de fronteiras . Nossas referências foram mudadas : criaram-se transversalidades que nos obrigam a repensar nossa relação ao outro. E nas artes circenses temos que rever também essa relação intrinseca e interativa entre artista-criador-autor e publico.

Podemos observar que é na escrita de um espetaculo de circo que o imaginario do autor-artista pode realmente se desprender e abrir caminhos, e nesse aspecto, o circo contemporâneo vive seus primeiros passos, de forma dinâmica e empirica. Hoje podemos dizer que existem varias formas de escrever o circo. Podemos afirmar também que existem varios circos diferentes, uma diversidade enorme num panorama que tem como unica fronteira o mundo. Ainda não existem espetaculos de circo na Lua, mas quem sabe ? Podemos imaginar num futuro proximo um circo flutuante na Lua ou no espaço sideral…

Bibliografia :

-Œuvres complètes/ Tas de Pierres de Victor Hugo- editions rencontre volume 34(1968)
-Petit Prince de Antoine Saint- Exupéry / édition Gallimard Jeunesse- Folio Junior n° 100
-Archaos/ de Martine Maleval- Actes Sud- papiers/CNAC- 2010
-IN VITRO de  Guy Carrara- éditions L’Entretemps- Montpellier- 2009

Raquel Rache de Andrade
Diretora do Polo de Circo de Marseille e da Bienal de Circo de Marseille

 

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O circo como espaço de alteridade http://localhost/blog/o-circo-como-espaco-de-alteridade/ http://localhost/blog/o-circo-como-espaco-de-alteridade/#respond Wed, 26 Jul 2017 16:37:51 +0000 http://localhost/?p=4051/ O post O circo como espaço de alteridade apareceu primeiro em Sesc - Circos 2017.

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Marcos Francisco Nery Ferreira


O circo é uma arte do corpo que coloca em evidência o potencial técnico e poético do artista. São estas duas potencialidades que se articulam no processo de composição cênica de um número ou espetáculo de circo. Elas não podem trabalhar de maneiras independentes, caso contrário o material técnico não tem função poética e não serve à cena. Por estes motivos, as experiências vividas por cada artista durante o processo de formação é relevante para revelar uma poética do próprio circense a partir do seu corpo, capaz de uma reflexão criativa.

Andrieu (2012) afirma a prática corporal é resultado das ações executas pelo artista e que transformam o seu próprio corpo a partir do fornecimento de uma experiência. A repetição contínua desta última modifica progressivamente a identidade e revela novos schémas corporais[1]. Desta maneira, “a experiência corporal é uma percepção biosubjetiva” (Ibid., p. 14), e é neste lugar que revela-se a poética do intérprete. A partir da sua cultura de formação e experiências que foram incorporadas por seu corpo, o artista é capaz de criar e recriar outros schémas corporais para torna-se outro(s).

Este processo acontece hoje em dia em um mundo onde aparecem “sujeitos de desempenho e produção” (HAN, 2015, p. 23) e onde as práticas artísticas tendem cada vez mais a eliminar suas fronteiras. A cena contemporânea “desterritorializa-se” e as formas artísticas perdem suas identidades quando entram em relação com outras linguagens. Por outro lado, o espetáculo circense é híbrido desde sua origem e está em contínua transformação. Atualmente, verifica-se uma disparidade de espetáculos e de processos de criação em circo que revelam novas formas estéticas e poéticas.

A geração de artistas de circo dos anos 2000 é marcada por uma heterogeneidade de experiências e práticas pedagógicas. Isto é resultado da mobilidade destes sujeitos em busca de uma formação nas artes circenses que foi facilitada sobretudo pelo surgimento das escolas circo pelo mundo. De maneira genérica, estas escolas apresentam um programa pedagógico cujo objetivo é a formação de artistas generalistas ou especialistas em diálogo com a pluralidade da cena circense contemporânea.

Cada escola visa a formação de um tipo de artista que ela acredita corresponder às demandas do contexto político, econômico e cultural da atualidade. Tomando como exemplo o modelo de artista circense formado pela École Nationale de Cirque de Montréal, observa-se, de forma geral, a formação de um artista entre 20 e 24 anos, polivalente e com um alto nível técnico; entretanto, são artistas enquadrados em um tipo de normas de produção que visa prioritariamente a inserção em grandes companhias canadenses. Isso produz, portanto, uma formatação de um modelo de artista para um determinado contexto de criação/produção onde o desempenho prevalece sobre a poética.

O interessante ocorre quando tais artistas não se inserem somente neste meio e buscam outros tipos de mobilidade: por exemplo, retornando ao seu país de origem com seu conjunto de saberes incorporados a partir da sua formação artística e, ao mesmo tempo, entrando em relação com outros saberes, práticas e linguagens. Neste sentido, estabelecem-se novas redes de processos de criação, contaminações de linguagens e práticas e determinam-se novas relações de trabalho nas artes circenses, portanto, “é o conjunto do sistema socioeconômico do circo que conheceu notáveis mudanças” (FAGOT, 2010, p. 22)

No que se refere aos processos criativos que surgem neste contexto, eles se afirmam como lugar de encontros e intercâmbios de experiências, onde tudo se mistura revelando processos de alteridades valiosos. A práxis é o mais importante para o artista e, assim, cada processo de criação expõe o jogo de tensões entre as afinidades e as diferenças que surgem da relação dos elementos de composição. Neste sentido, o corpo do artista pode incorporar o outro, como “condição de passagem de um mondo possível para outro” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 119). Isto permite o surgimento de diversas formas de qualidades expressivas características destes encontros.

A cena contemporânea revela-se, assim, como o jogo de relações entre diversas perspectivas a partir destes encontros e da relação técnica-poética de cada artista. A noção de centro se esfacela e abre espaço para estas múltiplas perspectivas. Por outro lado, as fronteiras são cada vez mais porosas e, portanto, novas linguagens brotam por meio destes espaços de alteridade. Emerge, então, a noção do estar entre: práticas, culturas, línguas, linguagens, procedimentos, princípios, etc. que remete tanto às distâncias entre estes elementos quanto às diferenças qualitativas. No circo, o corpo é o lugar que concentra estas tensões em relação. Este corpo que deve ser visto como “sujeito outro, como uma figura de Outrem que, antes de ser sujeito ou objeto, é a expressão de um mundo possível” (Ibid., p. 117).

Referências:

ANDRIEU, Bernard. La contorsion comme immersion expérientielle: créer un nouveau schéma corporel. In: Momento, v. 6. Paris: Hors le murs, 2012.
FAGOT, Sylvain. Le cirque: entre culture du corps et culture du risque. Paris: L’Harmattan, 2010.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O nativo relativo. Mana, Rio de Janeiro, v. 8, n.1, p. 113-148, 2002. Disponível em: . Acesso: 01  de maio de 2016.

[1] Segundo Bernard Andrieu (2012), os schéma corporal é o que engaja a motricidade em um certo modo de ação cuja convenção é a expressão cotidiana. A partir da incorporação de técnicas do corpo, o schéma corporal produz inconscientemente os gestos para agir automaticamente em um saber “incarnado”, imediatamente disponível e adaptado ao exercício habitual do corpo.

Marcos Francisco Nery Ferreira
É intérprete e pesquisador brasileiro estudou na Escola Nacional de Circo e aperfeiçoou-se em Montreal – Canadá, é formado em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia, Mestre em Artes do Espetáculo pela Unesp e Doutorando em Estudos e Práticas das Artes pela UQAM | Université du Québec à Montréal em co-tutela com a USP. Além de ter um trabalho artístico consistente e reconhecido internacionalmente, ele já colaborou como pesquisador no Centro de Memória do Circo (SP).

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Uma conversa com o palhaço Clov’s http://localhost/blog/uma-conversa-com-o-palhaco-clovs/ http://localhost/blog/uma-conversa-com-o-palhaco-clovs/#respond Mon, 26 Jun 2017 17:51:25 +0000 http://localhost/?p=3913/ O post Uma conversa com o palhaço Clov’s apareceu primeiro em Sesc - Circos 2017.

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O catarinense Fabiano Peruchi apresentou a história do simpático palhaço Clov’s no espetáculo “O Sapateiro”, no Sesc Belenzinho, durante o Festival Internacional Sesc de Circo. “O universo da sapataria é muito interessante porque é uma profissão que passa de pai para filho, assim como o universo do palhaçaria”, conta Peruchi. Sapatos, botas, remendos, coisas e mais coisas penduradas nas paredes. O cenário das sapatarias é parecido no mundo todo. Todos esses elementos foram trazidos para o palco para contar a história do sapateiro que sonha em ser artista de circo, desejo este sempre adiado pelo ofício tradicional da família.

O Clov’s é um palhaço que Fabiano interpreta há doze anos. Quando decidiu montar um novo espetáculo, sabia que queria se aprofundar na pesquisa sobre palhaçaria e também trabalhar com sapatos. Para a construção do personagem, Peruchi fez laboratório em uma das sapatarias mais antigas de Criciúma, sua cidade natal. Lá buscou as referências que compõem o cenário, inclusive um dos moldes foi presente da família dona da sapataria. “As sapatarias novas estão ficando muito limpinhas, sem graça. Ao entrar numa antiga parece que você está entrando em um novo mundo”.

Para a direção, convidou o palhaço argentino Martin Martinez e juntos começaram a pensar como transformar os elementos da velha sapataria em elementos circenses. “É um espetáculo simples, mas com bastante verdade. O riso é bem pontual, não é de gargalhada”, conta o artista.

A sala de espetáculos estava lotada para a apresentação. Na primeira fileira, as crianças estavam curiosas para o que aconteceria. O sapateiro Clov’s coloca em cena questões comuns a todos nós de maneira uma maneira comovente. As cenas em que “luta” com uma mosca e quando transforma uma mala da sapataria num mini picadeiro, e os pares de sapatos em trapezistas e equilibristas encantaram a plateia.

Acompanhe a entrevista que fizemos com Fabiano Peruchi, o palhaço Clov’s.

Escrito por
Mariana Branda

Vídeo:
Renata Dantas 

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O Resumo da Ópera http://localhost/blog/o-resumo-da-opera/ http://localhost/blog/o-resumo-da-opera/#respond Mon, 19 Jun 2017 01:00:47 +0000 http://localhost/?p=3781/ O post O Resumo da Ópera apareceu primeiro em Sesc - Circos 2017.

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Artistas dos quatro cantos do planeta, técnicas variadas e materiais pra lá de inusitados. Acrobatas, dançarinos, músicos e atletas. Circos é isso, e muito mais.


Difícil explicar o que foi o Circos – Festival Internacional Sesc de Circo. Talvez os números ajudem a dar um panorama do evento: 31 espetáculos, entre apresentações e intervenções, 15 ações formativas relacionadas ao universo circense, em 13 unidades da capital. Uma torre de babel quando se trata de estilos artísticos, mas todos extremamente bem costurados entre si, resultando em grande riqueza de técnicas, e ricas sensações para o público (o respeitável). Afinal, não é todo dia que você vai ao circo e dá de cara com arqueiros disparando flechas com uma precisão milimétrica.

Sim, teve arqueiros e muito mais! Palhaços que tocavam violino até de ponta cabeça (e aliás, divinamente); aconteceu durante o Circos também. Um grupo de acrobatas que fizeram da precisão de seus movimentos um balé de formas tão exato, que pareciam um, dez, cem deles. Ilusão de ótica e magia no palco. Voltamos a ser todos crianças, nos surpreendemos, o ar fica preso no pulmão enquanto a trapezista não termina seu salto em segurança. Artistas que com o uso de cestos e materiais naturais como bambus, objetos de grande simplicidade, fizeram apresentações de uma enorme complexidade. Um palhaço de humor ácido e desiludido contou suas memórias e mágoas, uma artista caminhou sobre uma superfície de ovos, e outros improvisaram de acordo com o público presente, criando assim sempre um show diferente por apresentação.

“… Trata-se de oportunidade relevante para reafirmar uma vocação de criatividade e beleza, de transformação das dinâmicas cênicas que, em diálogo contínuo, fazem a produção contemporânea do Circo mundial se confrontar, se revelar e se atualizar com a tradição da linguagem”. Danilo Santos de Miranda, diretor regional do Sesc.

Quem teve a chance de assistir a alguns espetáculos, pode ver ao vivo essa criatividade e beleza nos cenários, nas trilhas sonoras tão bem colocadas e escolhidas, nos detalhes das roupas e as vezes até na ausência delas, revelando toda a força física da dedicação dos artistas do circo. Linguagens clássicas e modernas passaram pelo palco das 13 unidades da capital, demonstrando ao espectador que o circo também se reinventa, se refaz, e atinge linguagens que até então pareciam pertencer a outras esferas artísticas, mas que na verdade estão todas bem amalgamadas e representadas na grande tenda do circo, que generosamente abraça tudo e todos.

E tiveram inúmeras curiosidades e bizarrices também: uma sonâmbula que tinha medo de dormir, uma mulher que sozinha era um circo inteiro, acrobatas de olhos vendados que exploraram ao máximo a cumplicidade entre eles. Sim, é muito difícil explicar tudo o que aconteceu o durante os dias do festival Circos, mas lhes asseguro que teve tudo isso e muito mais. E ao final, a gente pede bis. 😉

Queremos ouvir vocês agora! Gostaríamos de saber sua opinião sobre o festival. Tem uma pesquisa elaborada pela curadoria e seria muito importante saber o que você achou, quantos espetáculos assistiu, em que unidade…

Não precisa fazer nenhum malabarismo para preencher. São no máximo 5 minutinhos da sua atenção. Só clicar aqui.

Escrito por
Paola Brunelli 

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Em busca do Circo perdido http://localhost/blog/em-busca-do-circo-perdido/ http://localhost/blog/em-busca-do-circo-perdido/#respond Sun, 18 Jun 2017 20:51:43 +0000 http://localhost/?p=3875/ O post Em busca do Circo perdido apareceu primeiro em Sesc - Circos 2017.

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Maria Eugênia de Menezes


“Bocas, quantas bocas / A cidade vai abrir / Pruma alma de artista se entregar / Palmas pro artista confundir / Pernas pro artista tropeçar / Voar, fugir / Como o rei dos ciganos / Quando junta os cobres seus / Chorar, ganir / Como o mais pobre dos pobres / Dos pobres dos plebeus / Ir deixando a pele em cada palco / E não olhar pra trás / E nem jamais / Jamais dizer / Adeus”.

Chico Buarque, Na carreira.


É fácil apreender o significado da palavra memória, mas difícil circunscrever o termo a uma definição única e completa. Durante muito tempo, acreditou-se em uma espécie de memória pura, como se o cérebro humano funcionasse como um repositório de lembranças que podem ser acessadas de tempos em tempos. Foi com a publicação de Matéria e memória, em 1896, que Henri Bergson viria a abrir brechas nessa visão cristalizada. No lugar da ideia de que o ato de lembrar está reduzido a uma dimensão física, Bergson revolucionava ao dar uma dimensão espiritual da memória. A memória, sugeria ele, não se coloca como uma verdade inexorável a ser resgatada. Antes, é um processo de atualização das lembranças. Como se cada reminiscência fosse o resultado de um movimento, um ziguezague no tempo, que retira uma imagem do passado e a encarna no presente.

Parcela considerável do impacto do espetáculo Picolla memória se deve à maneira como a companhia consegue lidar com o lugar afetivo que o circo tem para gerações de brasileiros. Ao falar de tradições, ao evocar lonas coloridas e picadeiros imensos cobertos de serragem, o grupo Piccolo Circo articula uma dimensão coletiva a muitas histórias e recordações pessoais. Assim, as narrativas de quem está no palco começam, gradativa e silenciosamente, a conversar com as lembranças de cada espectador no escuro da plateia. Uma roda do tempo se põe a girar. Surge, para cada um, a imagem do primeiro palhaço, a primeira visão das luzes salpicando o céu, o rufar dos tambores e aquele medo antigo, já quase esquecido, quando o acrobata se lança no ar sem rede de proteção.

O espetáculo, que faz sua estréia no Festival Internacional Sesc de Circo, divide-se, claramente, em duas partes. Na primeira, um mestre de cerimônias vem falar das tradições do circo por meio de biografias pessoais – ficcionais e reais – e também pelo regaste do circo brasileiro do último século. Há fragilidades nessa dramaturgia, assinada por Nereu Afonso, que por vezes pesa a mão no seu apelo sentimental e em suas pretensões nostálgicas. Nem sempre é preciso verbalizar o que já está dito. Mas sobram elementos em cena e imaginação aos intérpretes para compensar o que falta ao texto.

Em cena, uma trupe ensaia uma peça. Toda essa parte do espetáculo merece o cuidado de Fernando Neves, diretor reconhecido por seu trabalho com o grupo Os Fofos Encenam. Filho de uma família de portugueses que emigrou para o país para trabalhar no circo, Neves conduz uma longa pesquisa sobre a tradição do circo-teatro entre nós. A vertente, que teve sua força maior entre o final do século 19 e os anos 1960, propunha a entrada do drama nas lonas circenses. A proposição narra esse encontro da comédia com os folhetins românticos, a mistura de números cômicos com a farsa e o melodrama, a criação de personagens tão marcantes em nossa trajetória cênica quanto a mocinha inocente, o pai severo e o galã impetuoso.

O crescimento urbano e a especulação imobiliária expulsaram os circos de lona das grandes cidades. Nas duas últimas décadas, essa arte deixa de fazer parte do cotidiano da maioria da população, ainda que permaneça muito viva como parte do inconsciente coletivo. A segunda metade de Piccola memória promove o encontro entre esse circo do passado e sua potência no presente. Convoca-se uma seleção de variedades circenses nessa parte do espetáculo. A beleza das acrobacias aéreas no trapézio, a elegância da bailarina equilibrista, os saltos mortais. É um passeio nostálgico, mas não só. Uma vivacidade extrema se faz evidente, sobretudo, na arte da palhaçaria. Uma irreverente dupla de clowns, dirigida por Fernando Sampaio, torna tudo vivo. É uma força do corpo cômico que se impõe. Ali, as convenções temporais se apagam. Estão juntos memória e invenção, o sabor do passado e as possibilidades do contemporâneo.

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Circos do eu, Circos do mundo http://localhost/blog/circos-do-eu-circos-do-mundo/ http://localhost/blog/circos-do-eu-circos-do-mundo/#respond Sun, 18 Jun 2017 20:33:57 +0000 http://localhost/?p=3869/ O post Circos do eu, Circos do mundo apareceu primeiro em Sesc - Circos 2017.

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Kil Abreu


Em Sobrevoltas, jovens artistas circenses fazem perguntas ao ofício


Em um dos seus estudos sobre o teatro moderno, o teórico e dramaturgo francês Jean-Pierre Sarrazac projeta, entre outras, uma recorrência que se estende à cena contemporânea: a tendência à rapsódia e o gosto pelo depoimento íntimo. Solidifica-se e difunde-se, assim, o que ele identifica como uma épica às avessas –  narrativas que no oposto do esquema brechtiano não querem partir do problema dos enfrentamentos coletivos e sim das questões singulares do sujeito. Épicas íntimas, em que os assuntos de interesse comum são vocalizados através do relato de experiências singulares. A ideia de rapsódia tem a ver com isso, com o contar, e também com formas cênicas livres, “patchworks formais” que já não se preocupam em alcançar a fugidia totalidade do real e, sim, apresenta-lo francamente a partir das suas fraturas.

Sobrevoltas, o trabalho que reúne as companhias Circo Enxame e Circo Mínimo, alinha-se, nas linguagens e recursos circenses, a essas narrativas íntimas e ao gosto pela montagem estruturada em fragmentos (neste segundo aspecto, mais que no primeiro, está já de acordo com a tradição do picadeiro). Quanto a fazer da cena o espaço para a confissão pessoal, é proposta que, como no teatro, se coloca no fio da navalha. É neste lugar que temos visto muito da cena contemporânea naufragar. A despeito da enorme variedade de experiências artísticas que abraçam a fala pessoal, não ficcional, como matéria cênica, não é sempre que o relato íntimo consegue alcançar o ponto necessário da teatralidade para escapar do ensimesmamento e agregar o interesse geral.

Neste espetáculo, concebido pelo núcleo que atua e dirigido com a audição necessária pelo veterano Rodrigo Matheus, felizmente as falas íntimas conseguem, de par com as ações, estabelecer um campo comum que garante não só a sustentação das cenas como a empatia diante do que é dito, vivido, demonstrado. Provavelmente porque projetam, das impressões destes artistas diante do ofício, questões políticas e existenciais que se apresentam como se fossem nossas próprias questões. Ainda que não sejamos do circo. É o procedimento elementar, mas nem sempre observado, para uma dramaturgia que, mesmo amparada em circunstâncias particulares, concentra nos seus argumentos discussões que tendem a fazer apelos de alcance mais amplo.

Mais do que a pergunta lançada pelo grupo (o que é o circo hoje?), o que prevalece é a maneira como ela repercute em nós: o que é a vida, hoje, vista a partir do olhar juvenil dos que enfrentam o encontro com o picadeiro-mundo? Pois, por exemplo, o que é a fala do (excelente) percussionista Rubens de Oliveira, quando reclama sobre o não pertencimento ao “mercado”, senão a tradução precisa da ambição da maioria, artistas ou não, de conseguir circular em uma sociedade onde circular é quase tudo? Para dizer de outra forma, com o sociólogo Francisco de Oliveira: no mundo da mercadoria, o problema para nós não é ser mercadoria. O problema é não conseguir sê-lo. Diante da época, é uma expectativa justa.

Assim, as sequências do espetáculo alternam depoimentos falados e depoimentos em atos físico-estéticos, cada artista em seu aparelho ou habilidade especial, o verbo iluminando a ação e vice-versa, mas quase nunca de maneira ilustrativa: da história de convivência com a doença ao encontro com o circo (Giulia Destro, que faz uma comovente, dramática intervenção na corda indiana). Das passagens pelos cruzamentos e faróis da vida ao domínio virtuoso dos malabares (Renato Mescoki). Da pergunta sobre a própria vocação ao passeio sobre a corda bamba (Jan Leca). Os fragmentos de intimidade encontram na cena lugar de expressão que totaliza (remetendo novamente a Sarrazac) uma espécie de “circo do eu” que por sua vez projeta para nós o “circo do mundo”. E lá estamos, de alguma maneira, bem pertencidos.

Sobrevoltas seriam voltas umas em torno das outras? Seriam voltas sobre outras? Seriam visões de cima, do alto? Quaisquer destas leituras têm lugar em um diálogo poético com a montagem.  E nos deixam no espaço aberto, aventuroso, de uma estimulante expectativa. De que a vida seja, de todo modo, um lugar de liberdade para o desejo e a vocação que cada um quiser apontar.

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Pedagogia e método do palhaço http://localhost/blog/pedagogia-e-metodo-do-palhaco/ http://localhost/blog/pedagogia-e-metodo-do-palhaco/#respond Sun, 18 Jun 2017 20:19:51 +0000 http://localhost/?p=3865/ O post Pedagogia e método do palhaço apareceu primeiro em Sesc - Circos 2017.

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Kil Abreu


Em Fritos e refritos, os argentinos Chacovachi e Maku Fanchulini experimentam uma ética da desordem

Comparações tendem a ser redutoras, mas aqui vai uma cuja intenção é tentar dar conta de um trabalho realmente incrível: o palhaço argentino Chacovachi parece um irmão mais novo de Dario Fo, só que talvez mais malcriado, e dono de um discurso no qual a política está mais ao fundo da arte da palhaçaria. Mas está lá, e igualmente potente. Junto com sua jovem parceira de cena, Maku Fanchulini, apresenta um espetáculo desconcertante em que política, lances existenciais e a crítica ferina aos modos ordinários da vida aparecem amalgamados em uma quase aula sobre o ofício.

O ponto de vista é bem determinado:  não abandona as gags e entradas deixadas pela tradição, mas as reveste com um gosto apaixonado pelo discurso cheio de posições e, no entanto, não militante (ou ao menos não tipicamente militante); pela reflexão crítica e quase filosófica em torno dos atos cotidianos do cidadão médio, sem cair no moralismo ou na carolice; pela desobediência tomada como princípio da ação que, para afirmar-se, procura sempre testar o seu contrário. Ou seja, é uma poética com muito interesse em uma ética particular: aquela que se inventa na rebeldia comum à palhaçaria, mas em uma forma nada, nada ingênua. Um palhaço, pode-se dizer, dialético, movido por uma inteligência afirmativa, mas não pedante.

É notável que, mesmo aportada em todos esses fundamentos, trata-se de uma cena francamente popular, direta e capaz de mobilizar jogos cômicos em que tudo se aproveita com efeito – da interação permanente e sustentada com a plateia às reviravoltas do discurso. Em uma retórica cheia de deliberadas armadilhas, o espetáculo segue testando nossas disposições para o risco sempre renovado que é tomar decisões. E olha a possibilidade do nosso fracasso, da nossa falha de julgamento, com interesse maior que pela resposta ‘acertada’. Como anunciado no início da representação, uma das tarefas da dupla, habilmente realizada, é descobrir o palhaço em cada um dos que estão confortavelmente sentados à plateia, esperando o show começar.  O método usado mistura exposição (inevitável), mas também uma boa dose de ternura, de apreço pelo demasiadamente humano que de repente já está ali, a dividir a cena e a ser perguntado sobre as dores, delicadezas e alegrias do mundo, pelo nobre e pelo ridículo da vida.

Aqui a palhaçada também é palhaçaria. A distinção foi feita pelo professor Mario Bolognesi (em “Uns fazem palhaçada, outros palhaçaria”, texto publicado no catálogo desta edição do festival Circos) para indicar vertentes da arte do palhaço: uma mais espontânea e interessada no efeito imediato do riso; outra mais interessada em reflexões ou dramaturgias que levam a ele. Embora não se deva separar rigorosamente, pode-se dizer que as entradas de Maku Fanchulini tendem à palhaçada, seja na interação com a plateia (que vai ao palco), seja na apresentação mais recortada das gags e números. Em todo caso são passagens quase sempre auto-irônicas, em que os efeitos e truques do circo são postos a claro, como na sequência em que toda a mise en scène para uma cena de equilibrismo (o ovo na testa) revela a ajuda inesperada de um pouco de cola, pondo abaixo a ilusão de desempenho (mas na dialética do espetáculo, ao final, a mesma Fanchulini faz um número “verdadeiro”, e muito bom, na mesma linha).

Para o Chacovachi ficam tanto a palhaçada quanto a palhaçaria, no sentido da condução dos jogos físicos e retóricos que fazem a narrativa do espetáculo. Como na ótima cena de um prometido milagre em que um balão, diz ele, não será furado por uma agulha afiada, e isso se deve não a uma técnica de ilusionismo e sim ao efeito de fé vindo da plateia. Vestido de túnica e em caricatura explícita dos cultos que colocam a crença adiante da razão, em meio a cânticos e tais, ele desconstrói a expectativa fazendo o balão furar na primeira tentativa. Em seguida, porém, faz o truque funcionar perfeitamente. Como se disse, a politização está lá, mas ganha mais efeito e amplifica o sentido do riso porque nunca é moralizante.

É nessa medida das idas e voltas de ações e pensamentos que o espetáculo se dá à plateia, ao tempo em que a assimila em uma contagiante autocrítica sessão de risos (e aí já nos incluímos, todos). Uma pedagogia do palhaço e uma ética da desordem que são bem mais que a criação de ações para se chegar a um cômico genérico. É que a iconoclastia tem endereço: é a rebeldia de quem reclama o sagrado espaço da liberdade e da autenticidade em um mundo cada vez mais pautado pelo cálculo da imagem sem falhas, promissora de sucesso. O trabalho dos cômicos argentinos é mostrar os pés de barro dessa nossa fantasia. Com a autonomia de pensamento e o repertório maduro do ofício que caracterizam os grandes artistas.

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Viagem ao país da infância http://localhost/blog/viagem-ao-pais-da-infancia/ http://localhost/blog/viagem-ao-pais-da-infancia/#respond Sun, 18 Jun 2017 20:06:45 +0000 http://localhost/?p=3862/ O post Viagem ao país da infância apareceu primeiro em Sesc - Circos 2017.

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Welington Andrade


“Um touro, que vivia nas montanhas, nunca tinha visto o homem. Mas sempre ouvia dizer por todos os animais que era ele o animal mais valente do mundo. Tanto ouviu dizer isto que, um dia, se resolveu a ir procurar o homem para saber se tal dito era verdadeiro. (…)”.

Luis da Camara Cascudo, Contos tradicionais do Brasil.


HumAnimal, espetáculo da companhia Circo da Silva recomendado à faixa etária que compreende crianças de sete meses a oito anos de idade, é de uma simplicidade a toda prova. Nele, misturam-se elementos básicos de palhaçaria, dança e teatro, executados ao som de uma simpática trilha sonora instrumental que logo instaura em cena uma atmosfera de bem-vinda ludicidade. A mesma, a rigor, obtida por Fernanda Marques, Isabel Abrantes e Paula Preiss (também diretora do trabalho), que, manipulando figurinos multifuncionais, encarnam em cena joaninhas, tartarugas, araras, caracóis, sapos, galinhas, elefantes, patos, touros, cavalos e ainda outros animais reais, ou mesmo seres imaginários como as sereias, cujos comportamentos apresentados de forma estilizada despertam não somente a atenção e a curiosidade das crianças menores como também a empatia dos adultos e do público infantil um pouco mais velho.

O primeiro ponto positivo a ser destacado nessa encenação singular é o estímulo à imaginação que ela propõe às crianças. Imaginação essa vinculada à experiência de ir ao teatro. Em Infância e história: destruição da experiência e origem da história, o filósofo italiano Giorgio Agamben adverte, como glosa dos conceitos de fantasia e experiência: “Nada pode dar ideia da dimensão da mudança ocorrida no significado da experiência como a reviravolta que ela produz no estatuto da imaginação. Dado que a imaginação, hoje eliminada do conhecimento como sendo ‘irreal”, era para a antiguidade o medium por excelência do conhecimento. […] Longe de ser algo irreal, o mundus imaginabilis tem a sua plena realidade entre o mundus sensibilis e o mundus intellegibilis, e é, aliás, a condição de sua comunicação, ou seja, do conhecimento”. Passada a fase inicial da celebração acrítica do mundo das realidades virtuais proposto pela cultura digital que nos cerca, e em boa medida nos aprisiona, seria o caso de considerar muito apropriada a criação de um trabalho que convida à imaginação pura e simples. Sem que seja necessário fazer uso de toda sorte de aparatos tecnológicos e bugigangas tecnocráticas. Os corpos das intérpretes, seus figurinos, os poucos adereços que elas manipulam, a música e a iluminação tratam de, artesanalmente, dar conta do recado.

O segundo aspecto positivo diz respeito à ludicidade simples, direta, sem floreios alcançada pela proposta. A função do jogo, nos lembra Johan Huizinga, em Homo ludens, é definida pelos dois aspectos fundamentais encontrados nele, o da luta e o da representação. E Humanimal investe basicamente no caráter representativo do jogo de imaginação (sempre ela) estabelecido com as crianças. “O pavão e o peru limitam-se a mostrar às fêmeas o esplendor de sua plumagem, mas aqui o aspecto essencial é a exibição de um fenômeno invulgar destinado a provocar nossa admiração”, afirma o historiador holandês, para logo em seguida declarar (de modo que soa algo dirigido especialmente a nós): “Se a ave acompanha essa exibição com alguns passos de dança, passamos a ter um espetáculo, uma passagem da realidade vulgar para um plano mais elevado. Nada sabemos daquilo que o animal sente durante esses atos, mas sabemos que as exibições das crianças mostram, desde a mais tenra infância, um alto grau de imaginação. A criança representa alguma coisa diferente, ou mais bela, ou mais nobre, ou mais perigosa do que habitualmente é. Finge ser um príncipe, um papai, uma bruxa malvada ou um tigre”. E eis que aqui chegamos à terceira qualidade do trabalho, sustentada pela singela dramaturgia que investe na contínua metamorfose dos animais exibidos em cena.

Na sessão do último sábado, dia 17 de junho, crianças e adultos sentiam-se transportados de prazer, ao testemunharem cada transformação, procurando ainda adivinhar, enquanto ela ocorria, a forma final a ser representada. Desejando sair de si mesmas – podemos pensar novamente com Huizinga –, os meninos e as meninas na plateia do Teatro do Sesc Ipiranga eram convidados a acreditar, com ludicidade e imaginação, que o trio de atrizes encarnavam este ou aquele bicho, sem perderem de todo o sentido da “realidade habitual”.

Terminado o espetáculo, o trio de intérpretes ainda brindou a audiência com uma divertida descida à plateia, sob a forma de macacos muito ágeis e imprevisíveis. Foi o momento de a crítica abandonar o teatro. Porque já era impossível distinguir quem era homem, quem era animal.

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