PENSAMENTOS (S)EM FRONTEIRAS

Um festival nasce sempre muito antes de sua realização. Obviamente, conhecer e pensar espetáculos, criar uma linha curatorial e critérios de escolhas, imaginar as atividades que irão compor o evento, planejar estratégias de realização, bem como entender a essencial presença do público, exige tempo e cuidado. No entanto, há um outro tempo, da maturação, em que os conhecimentos acumulados vão agindo sobre a prática, aperfeiçoando o andamento de cada edição.

Pensar um festival de circo é um exercício que traz à tona memórias, desejos e conceitos que norteiam a linguagem artística em questão – e suas intangibilidades incorporadas. Sucessivas realizações de um mesmo festival, consequentemente, trazem reflexões contemporâneas que se conectam aos temas visitados anteriormente criando camadas sobrepostas de inquietações.

No caso do CIRCOS – Festival Internacional Sesc de Circo, temas como dramaturgia para o circo, as (des)virtuoses da linguagem, bem como os caminhos e perspectivas das artes circenses no Brasil, compõem esse repertório de pensamentos e dialogam com as novas questões para  esta quarta edição, a primeira bienal.

“O maior espetáculo da terra, sob outro olhar”, frase chave das primeiras edições, pode traduzir a importância de refletir sobre uma linguagem múltipla, apresentar ao público suas diferentes facetas, discutir os caminhos da criação e da realização nas artes circenses, mirando o circo como é hoje em suas evoluções e transformações.

A edição de 2017 se debruçou incialmente sobre dois eixos de investigação: um deles focando os antigos e os atuais locais dos encontros entre artistas e trupes – onde se configuravam os aprendizados e trocas – e o outro investigando as formas contemporâneas de ensino em circo no mundo e as estéticas que vigoram a partir delas. No entanto, ao detalharmos essas temáticas sob uma perspectiva abrangente, notou-se a convergência dos dois eixos em um único, ainda mais rico e complexo, extrapolando os conceitos de centro, bordas e identidade.

As mudanças nos modos de comunicação e nos encontros deslocam o centro das conversas. O lugar de encontro não é apenas um espaço físico – o largo, a praça, o terreno onde se monta a lona – e fica cada vez mais claro que o centro é de onde se olha. A borda pode ser um espaço expandido, e as fronteiras são tênues, uma vez que se constroem hibridismos e formatos que incluem, muitas vezes, elementos dos dois lados de determinada linha divisória. As divisões, então, ficam borradas, e os mapas e identidades se embaralham.

A natureza dos deslocamentos, e a relação com o urbano, trazem mudanças irreversíveis e, afinal, é possível falar em permanência, sem considerar a atual permanência da mudança? O cruzamento e sobreposição das influências? É possível falar em uma única centralidade? O que é o centro, o que são as bordas?

Nesse mundo de retornos e sobreposições, o picadeiro reúne o movimento das andanças e mudanças, calcado no corpo de muitas memórias. Retrata e apresenta questões humanas e locais, determinando territórios, em seu conceito mais amplo, a cada novo elenco. No picadeiro, cruzam-se as técnicas, estéticas e relações pessoais.

Por sua origem itinerante, o circo agrega historicamente famílias, grupos e artistas de passagem em uma rotina de convivência no picadeiro e fora dele. Cada artista que passa traz sua experiência e leva um pouco do fruto dessa convivência consigo, quando parte para outras companhias, ou novos trabalhos. Dessa forma, ao longo do tempo se configuraram as influências e diálogos criativos, pela convivência durante a circulação da lona – e todas as outras formas de circulação. Na medida em que se fazem mais dinâmicas, mais fluídas, as atuais ferramentas de comunicação facilitam parcerias antes improváveis, simplificam e objetivam contatos, criando novas redes e novas contaminações. Isso inclui os artistas que saem do Brasil para concluir sua formação nas grandes escolas mundiais – França, Suécia, Bélgica, Canadá e outras – retornando com novas contribuições, ou as produções criadas e financiadas fora de seu país de origem, e as pesquisas híbridas, entre tantas outras possibilidades.

Esses trânsitos se identificam também nas relações de trabalho, já que as estruturas de circulação, o formato de financiamento e o próprio desenho das cidades modificaram a rotina circense, colocando em questão sua viabilidade nos modelos originais de circulação – a ocupação dos terrenos, a distribuição das lonas, a rotina de viagens pelo país. Novos modelos de negócio e novas relações com o público se estabelecem.

Dessa forma, o festival, com sua vocação de encontro, é um lugar privilegiado para olhar o circo que se constrói nesse trânsito, para apresentar os caminhos de uma pesquisa viva, constante e cotidiana, que se traduz no picadeiro: a sala de teatro, a rua, nas oficinas e nas discussões.

O CIRCOS – Festival Internacional Sesc de Circo, em 2017, propõe deslocar o foco das ideias preestabelecidas de centro, borda e identidade, e buscar as tramas que vêm sendo desenhadas em um mundo em constante mutação. A partir do propósito de difusão da linguagem, apresenta uma pesquisa que reflete as atuais tendências da produção circense, e coloca em circulação atrações nacionais e internacionais, fomentando o diálogo. Nos espetáculos, a presença de artistas de diferentes países e escolas, o hibridismo de técnicas e a incorporação de outras linguagens, vazam naturalmente para a cena acabada, e escancaram a diversidade nas construções.  Como temas, surgem as questões de identidade, de papel social, de lugar e espaço como eixos de relação. Bordas e centros se misturam, e o artista é o grande protagonista; corporifica os encontros e as desconstruções.

Afinal, o picadeiro trans-borda o mundo!

Carolina Garcez , Lucas Molina, Shirlei Torres, Susana Coutinho
Curadores

Para orientar na escolha das programações do CIRCOS preparamos um guia de bolso para tornar mais fácil a seleção do que assistir.