Página Inicial · Críticas : Da mesma matéria dos sonhos

O fluxo constante entre o picadeiro e o teatro italiano está na origem da Companhia Cênica Nau de Ícaros. Desde seu surgimento, em 1993, esse grupo de artistas viu-se imediatamente apegado ao circo tradicional e a seus personagens principais – o palhaço, o malabarista, os corpos que se contorcem com virtuosismo. Seus criadores são oriundos do Circo Escola Picadeiro. E as técnicas dessa velha arte – assim como seu ensino e difusão – nunca saíram do horizonte. Mas, esse sempre foi o ponto de partida. E não o de chegada.

No espetáculo ‘A.N.J.O.S’, fica evidente como os ensinamentos da lona se cruzam com outras artes – o teatro, a música e a performance – para formar um terceiro corpo. Nessa, que é a mais recente obra da trupe, Érica Rodrigues vem assumir, pela primeira vez, a direção e a dramaturgia.  Mas diversos traços constantes da trajetória da companhia, entre eles, essa acentuada simbiose de linguagens, estão mantidos.

Muito devedor do circo, o teatro brasileiro nem sempre reconhece sua genealogia. Para além das montagens europeias, que desembarcavam nos teatros do Rio de Janeiro imperial, foram também os circos – que se espalharam pelo País entre o final do século 19 e o início do século 20 – que ajudaram a forjar a face de nossos palcos. A extensa pesquisa do grupo Fofos Encenam e do diretor Fernando Neves veio jogar luz sobre essa dívida, tantas vezes esquecida. E constantemente referenciada pela Nau, que brinca com as superposições entre as duas artes.

Havia muito a companhia não se aventurava a criar para as plateias infantis. ‘A.N.J.O.S’ – título que faz uma referência direta às iniciais dos nomes dos personagens – vem contar a história de um menino, Nuno, e de suas tentativas de lidar com uma perda e com as dores do crescimento. O encontro com Ana e seus amigos Nico, Jonas, Suriá e Olívia aparece como motor de uma transformação: o típico percurso do herói. Naquilo que a literatura convenciou chamar ‘romance de formação’, o protagonista tem sua personalidade alterada e moldada por experiências traumáticas. Virá da crise, o seu amadurecimento.

Sem assolar-se com referências excessivas, a montagem narra um percurso semelhante a esse empreendido pela literatura romântica/realista. Imerso em planos de construir um barco, com o qual sairá pelo mundo em odisseia, Nuno faz, por diversas vezes, menção à figura materna. Terá sido essa a perda de que fala? Será a falta concretizada por uma morte real da mãe? Ou apenas sua morte simbólica, resultado inevitável do ocaso da infância?

Uma dramaturgia porosa, que não crave explicações nem a respeito dos traumas do protagonista nem acerca dos seus meios de superação, abre espaço para duas características estruturantes do espetáculo:  uma narrativa entrecortada, sem apego à linearidade, e a instauração de uma temporalidade distinta, em que tudo é mais lento (ou um pouco menos frenético).

Projetar um pequeno desenho. Substituí-lo por outro. Recobri-lo de mínimas estrelinhas de papel. Fazer um pássaro voar sobre a tela, indo ao encontro de uma flor. Logo de início, a plateia será colocada diante do tempo da artesania, da construção do sonho. Deve abandonar a ansiedade  – e o triste hábito – de recebê-lo pronto e acabado. O cenário de painéis translúcidos assinado por Marcio Medina e a iluminação de Wagner Freire criam o ambiente para que se retome a milenar arte do teatro de sombras – aqui revisitada. E também inflada de novos sentidos pelo uso da trilha sonora.

Tudo aquilo que remete diretamente ao circo – os números com cordas e argolas, as acrobacias aéreas – entra como contraponto à rudeza da vida.  Escapes para o território do lirismo. E, por isso mesmo, mais do que mero acessório, elemento estruturante. Quando esses intérpretes transformados em meninos rodopiam sobre o  palco, nada é impossível. Nuno pode conversar com a mãe ausente e vê-la dançar. Ana será capaz de surgir como um anjo com sua argola dourada. Pode-se levantar do chão, voar e deixar tudo o que é ruim para trás.

Maria Eugênia de Menezes é jornalista e crítica de teatro do Caderno 2, do jornal O Estado de S.Paulo e do site Teatrojornal – Leituras de cena. Formou-se em jornalismo pela USP, com especialização em Teoria Literária e Literatura Comparada. Trabalhou no Centro Cultural São Paulo e na Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. Atuou na Folha de S.Paulo, entre 2007 e 2010, escrevendo sobre artes cênicas. Participou de livros e atuou como curadora de programas, entre eles o Circuito Cultural Paulista e o Circuito São Paulo de Cultura. Foi membro do júri de premiações como Prêmio Bravo!