“O deleite do nonsense tem suas raízes na sensação de liberdade que experimentamos quando podemos abandonar a camisa de força da lógica”. Sigmund Freud.
Clockwork, apresentado pela companhia de circo sueca Sisters, descortina-se diante da plateia como um espetáculo que enche os olhos, desafia a razão e alimenta o espírito. O que move em cena os três integrantes do grupo – o francês Valia Beauvieux, o dinamarquês Mikkel Hobitz Filtenborg e o espanhol Pablo Rada Moniz – é a ideia de uma minuciosa precisão de movimentos e de uma sincronia estonteante entre eles. Entretanto, ainda que a execução técnica soe perfeita o tempo todo, o espectador fica longe de pensar que se trata de mero adestramento físico, dada a fascinante aura de teatralidade que exala constantemente do palco.
Os números apresentados envolvem linguagens que trabalham com diferentes tipos de movimento, como o teatro físico, a acrobacia, a street dance e a dança contemporânea. Paralelamente, algumas técnicas especificas também são exploradas, como a roda alemã, a mandala, a corda bamba e o duplo pole chinês. Embora o circo moderno tenha procurado cada vez mais disciplinar a energia irrefreável que muitas vezes toma conta de artistas bastante hábeis em tais linguagens e técnicas (embevecidos pela superação constante de seus próprios limites), a organização de muitos lances feéricos em uma estrutura narrativa cênica organizada a priori nem sempre é bem-sucedida, fazendo parecer que é mesmo a entropia e não a ordem a marca da arte circense.
Desse modo, chama logo a atenção em Clockwork a acurada expressividade da gramática cênica adotada pelos três intérpretes, que explora ao mesmo tempo com rigor e imaginação muitos elementos que desempenham funções diversas no espetáculo. O primeiro deles é a iluminação. Concebida por Bjorn Olav Hauknes, a luz, de inequívoco tom expressionista, faz o palco mergulhar em muitas sombras, que se convertem aqui e ali em devaneio e ilusão. Eis a primeira sugestão dirigida à percepção do espectador: os corpos que tomam essa cena escurecida parecem emancipados das regras do mundo empírico.
Outro elemento essencial é a música. A trilha sonora, composta por uma ritmada música eletrônica, é responsável por muitas marcações de tempo – tão caras à precisão a que se pretende chegar. Entretanto, ela não é absoluta, deixando-se intercalar por momentos de completo silêncio – quando a ausência de qualquer ruído aumenta o grau de incerteza sobre os sentidos veiculados no palco. Vale dizer que em uma sociedade de sons tonitruantes e tons histéricos como a nossa, usufruir de um intervalo silente que envolve o corpo de um intérprete igualmente taciturno equivale a saborear a mais profunda interioridade.
O humor que emana das cenas é o terceiro elemento estrutural do espetáculo, que aponta para a velha tradição do nonsense, contemporânea ao nascimento da própria linguagem do circo. Grande parte do jogo de cada um dos integrantes da companhia Sister com seu próprio corpo, com o corpo do colega ou com os muitos objetos que os desafiam é alimentanda pelo desejo humano da brincadeira, que conduz invariavelmente ao riso espontâneo. Clockwork é o que se pode chamar de um espetáculo bem-humorado de “teatro puro”, amparado por efeitos cênicos abstratos, destituídos de nexos lógicos e de enredos narrativos.
Em seu apurado estudo sobre a tradição cênica do absurdo, Martin Esslin afirma: “Sempre existiu uma ligação íntima entre os executores de atos de habilidade sem palavras – os malabaristas, os acrobatas, os aramistas, os trapezistas e os adestradores de animais – e o palhaço. É uma tradição teatral secundária profunda e poderosa, na qual o teatro de comédia (o teatro de texto) tem ido repetidamente buscar nova força e vitalidade. É a tradição do mimus, o mímico da antiguidade, uma forma popular de teatro que coexistiu com a tragédia e a comédia clássicas, e foi muitas vezes mais popular e influente do que elas”.
A estética corporal dos três hábeis momos de Clockwork propõe um diálogo ininterrupto com os elementos cênicos, no qual estão ausentes estrondos, vaidade, estardalhaço… A bem-temperada simpatia do trio e sua tão natural aderência aos objetos circenses são atributos especiais que levam o espectador a experimentar o fascínio diante da habilidade física de corpos tão virtuosísticos, próximos do miraculoso. Mas alguma coisa além da admiração pela destreza física também se infunde no espírito deste espectador. Um homem andando em uma corda bamba atada ao corpo de outro homem é uma imagem muito eloquente de nossa interdependência como indivíduos, da natureza gregária que nos caracteriza, da solidariedade universal, enfim, na qual desejamos ainda acreditar.
Welington Andrade é bacharel em Artes Cênicas pela UNIRIO e em Letras pela Universidade de São Paulo, onde também desenvolveu suas pesquisas de mestrado e de doutorado em literatura brasileira. É professor do curso de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero desde 1997. É autor de um dos capítulos da História do teatro brasileiro: do modernismo às tendências contemporâneas (Editora Perspectiva/Edições Sesc-SP, 2013). Desde setembro de 2013, é crítico de teatro da revista Cult.