Circo como evocação

Beth Néspoli

A gente não sabe o lugar certo de colocar o desejo”. Caetano Veloso, Pecado original.

Afinado com o conceito de transbordamento de fronteira, eixo curatorial da 4ª edição do CIRCOS – Festival Internacional Sesc de Circo, O sapateiro, solo do catarinense da cidade de Criciúma Fabiano Peruchi, dirigido pelo argentino Martin Martinez, está alicerçado em uma teatralidade na qual a linguagem circense é apenas evocada. O circo é referência de uma falta que dói. Sua presença é da ordem do desejo que pulsa nos vazios do corpo e do espírito.

Peruchi traz para a cena a figura do clown triste para o qual tudo é ausência a ser preenchida. Na memória afetiva do brasileiro talvez valha a remissão ao Pierrot apaixonado, porém é como se pudéssemos flagrá-lo em seu cotidiano, fora do período do Carnaval. Desde as várias trancas imaginárias da porta de casa que abre com o gestual da mímica ao entrar em cena, tudo é solidão nessa figura, ainda que o palco esteja repleto de objetos.

Esses serão manipulados por esse clown quase mudo que os transforma, ao sabor de sua imaginação nostálgica, nas mais diferentes pessoas. Assim, um sapato vermelho e desbotado, talvez como suas lembranças, ganha uma demão de tinta, e passa a ser uma parceira. Com expressão de felicidade, dança lentamente ao som da música saída de um rádio muito antigo e, não por acaso, a letra fala em traição e abandono.

No que seria a parede dos fundos, um painel com fotos remete a uma espécie de árvore genealógica onde se pode ler em grandes letras: Sapataria da Família Clov’s. Imagem que sugere transmissão oral de saberes, prática comum a muitas gerações de artesãos, mas também pode ser associada à tradição familiar como prisão, fronteira que delimita horizontes e impede romper com destinos traçados antes mesmo do nascimento.

Aos poucos, quase sem palavras, o sapateiro vai deixando clara sua paixão pelo circo ao transformar sapatos em trapezista, aramista e até mesmo no homem-bala que voa ao tiro de um canhão. Todos saem de uma mala ampliando a leitura: teria ele feito parte de uma trupe no passado? Teria sido expulso? Teria perdido o vigor físico necessário aos amantes dessa arte do risco? Seria a mala signo do desejo de fugir com o circo?

Tal ato de fuga, sem dúvida um dos elementos presentes no imaginário coletivo sobre o circo, é reelaborado por Peruchi nesse solo cuja poética reside na busca por acionar a memória afetiva que cada espectador guarda sobre essa arte. Curiosamente, a atração pela linguagem do palhaço parece ser matéria curtida no tempo e gênese dessa criação cênica. Peruchi é ator, diretor e gestor cultural e, durante dez anos, esteve envolvido com o grupo teatral Cirquinho do Revirado, de importante atuação na cena de Criciúma. Depois de quase três décadas de experiência em palcos e ruas, decidiu em 2008 criar o seu clown e, com ele, sua própria companhia, Teatro Lá nos Fundos, e o espetáculo Clov’s, o internacionável, com direção do carioca Márcio Libar.

É possível imaginar, devido ao grau de precisão já alcançado, que Peruchi venha elaborando desde esse primeiro solo um dos números de O sapateiro, a clássica luta do palhaço com um mosquito, com humor de vertente nonsense. Trata-se de uma batalha insana, que oscila da ferocidade à ternura, e permite muitas variações. Sob estímulo da arte de Peruchi, o inseto chega a se exibir em saltos mortais concretizados na imaginação do espectador. O número pode ganhar ainda sentido ampliado, uma vez que o bichinho acaba também por ser mais uma figura a preencher a solidão de Clov’s.

Na apresentação acompanhada pela crítica, talvez por ser a estreia no festival – em Criciúma a temporada teve início em outubro – parecia haver certa desmedida na atuação. Era como se a expressividade perseguida por Peruchi para o seu Clov’s tivesse acionado um afrouxamento excessivo do tônus emocional.

Ao optar por trabalhar com a precariedade como elemento poético – na falta do circo de verdade, a improvisação é parte da estética de O sapateiro – torna-se ainda mais fundamental a precisão nos tempos cômico-trágico exigidos por essa proposição. Porém, se tais oscilações são parte do risco de toda arte presencial, importa sublinhar que mesmo tendo como matéria de origem o desejo pessoal, O sapateiro salta a fronteira da pessoalidade e alcança potencial para tocar o espectador em sua condição humana pelo acionamento de memória cultural e existencial. Afinal, como diz Caetano Veloso nos versos da canção Pecado original, já citada na epígrafe deste texto, “todo homem, todo lobisomem sabe a imensidão da fome que tem de viver”.