Uns fazem palhaçadas; outros, palhaçarias

Mario Fernando Bolognesi

Julgava que palhaço fizesse palhaçada. Foi o que sempre ouvi e assisti. Mas, de uns tempos para cá, alguns passaram a dizer que faziam palhaçaria. O que teria mudado? Deve haver alguma razão para tal. Coloquei-me a campo para investigar o ocorrido.

A primeira pista me levou ao termo “clown”, alglo-saxão de origem, também adotado pelos franceses, ferrenhos defensores do idioma pátrio. Teria ocorrido um descuido por parte dos franceses? Não. Historicamente, os clowns ingleses dominaram os picadeiros e palcos parisienses no XIX , consolidando um modo de comicidade. Com isso, o termo perdurou.

Os franceses, por seu turno, dizem que a arte dos clowns chama-se “clownerie”. Tá aí: palhaçaria vem a ser a transposição do francês para o português. Efeitos inconscientes da colonização cultural? Por que não clowneria? Não fica bem escancarar a transposição idiomática à revelia do que predomina no português.

Por aqui, em ambiente de latinoamérica, palhaço ou payaso, são termos ainda pertinentes e de apelo popular (muito embora alguns rejeitem tal denominação e fazem questão de serem chamados por “clowns”). O mesmo não ocorre com a palavra “palhaçada”, que, no adjetivo, traz carga semântica pejorativa. Por que não substantivar? Se isso ocorresse a arte do palhaço seria chamada de palhaçada, pura e simplesmente.

Ocorre que o problema ultrapassa a adaptação terminológica – desconfiei, então. Mudanças também ocorreram na tipologia da personagem (há quem defenda não se tratar de personagem – mas isso é assunto para outro momento!), no repertório adotado e na postura profissional diante daquilo que se faz.

No tocante aos tipos cômicos – assim me parece – houve um retorno à polarização augusto-branco, algo que o fazer circense, desde os primeiros anos do século passado, avançou ao incorporar o contra-augusto (e, por decorrência, o tony em campos latinos), síntese que mantém e supera a dicotomia branco e augusto. Nos picadeiros latinoamericanos o contra-augusto predomina.

Os fazedores de palhaçarias tendem a buscar um novo repertório. Para bom entendedor, significa dizer que eles rejeitam o repertório herdado da tradição que – deve-se enfatizar – está em constante modificação, dado o predomínio da improvisação no trabalho dos palhaços e seu intuito de conquistar e agradar ao público. Contrapondo-se a isso, os clowns optaram por criar enredos e espetáculos com rigorosa marcação de cenas e movimentos, ao sabor das diretrizes do espetáculo teatral enclausurado entre quatro paredes. Assim, o tom comunicativo do cômico de picadeiro, ancorado na triangulação, cede lugar à expressividade da cena teatral. O público, então, é induzido à quietude contemplativa.

Resultado imediato dessa postura é o caráter autoral que rebate nos direitos de criação, que passa a ter um proprietário intelectual e particular, enquanto o repertório herdado é coletivo e público. A economia do mercado criativo caminha a passos largos também entre os fazedores de palhaçarias.

Coloco os termos em polaridades para enfatizar modelos distintos – e por vezes antagônicos – de se exercer a arte de palhaço. Exemplos nuançados, que navegam por essas duas águas, são muitos. Mas, não se trata aqui de olhar exemplos concretos, mas sim tendências que se manifestam na atualidade. Isto é – e se eu não estiver equivocado – os fazedores e defensores da palhaçaria aproximam-se do caráter estético, naquilo que o termo carrega de mais elitista; os que fazem palhaçadas apoiam-se no fazer profissional atrelado a uma atividade comercial, cujo critério não é a beleza e o belo, mas sim o eficiente, comunicativo, enfim, o que agrada ao público.

O vasto público popular, do picadeiro, das ruas e das praças da América Latina sabe muito bem o que é a palhaçada. Quanto à palhaçaria, a se insistir no termo e em tudo o que ele implica, há muito trabalho para a sua consolidação. E o principal: ter consciência de que a palhaçaria se direciona a um público educado na recepção do espetáculo. A palhaçada não requer tal iniciação.

Mario Fernando Bolognesi
Professor Titular (aposentado) da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, UNESP, Campus de São Paulo (SP). Bolsista em Produtividade e Pesquisa, nível 2, do CNPq. Doutor em Artes/Teatro pela Universidade de São Paulo, USP. Dedica-se ao estudo dos palhaços, da comédia e do cômico circense.