“A vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e
de fúria, sem sentido algum.”
William Shakespeare
O espetáculo A costureira, com a atriz suíça Gardi Hutter, dirigido por Michael Vogel, se fundamenta, a meu ver, num jogo constante com a metáfora: uma coisa está sempre ali como outra, no lugar de outra. Enquanto a palhaça Joana trabalha, ela se distrai e brinca com os objetos do seu ofício, teatralizando-os. Ela usa dois carreteis como dois namorados, ou dois manequins como um casal no altar. Desde o início, o que acontece em cena parece fazer parte de um jogo de dobra de sentido. Estamos sempre lidando com o duplo.
Não se trata de um trabalho que aposta na espetacularidade. Pelo contrário, a espetacularidade é, por assim dizer, mencionada, comentada, talvez criticada. Isso acontece no momento em que a atriz representa (e mostra que está representando) o que poderia ser um clímax num espetáculo de virtuose. Com uma trilha sonora que vai gradativamente motivando certa empolgação no público, ela simula a feitura ao vivo e em tempo recorde de um vestidinho para um bebê, como em um reality show de corte e costura. A cena ainda culmina com um cancan dançado por duas tesouras, que ela manipula como se fossem bonecos.
O ilusionismo espetacular é uma piada para ela. Joana é uma palhaça meio cínica, poderia ser um personagem do desenho do Pica Pau. Está sempre às voltas com um problema. Quando um se resolve, ela passa para outro. Ela se desentende com os seus utensílios de trabalho, se atrapalha com prazos, comemora pequenas conquistas do cotidiano, se anima com uma bobagem e depois vai dar atenção a outra coisa. Como Vladimir e Estragon de Esperando Godot. Como todos nós. Enquanto Godot não vem, fazemos teatro para nós mesmos.
E, como todos nós, ela se depara com a sua finitude. O espetáculo ganha em humor e sofisticação dramatúrgica quando faz essa dobra, ou seja, quando Joana passa a fazer para si mesma os truques que estava fazendo para o público. Seu duelo com a morte é um duelo consigo mesma. Quando apela para uma última refeição, para um último encontro amoroso, é a si mesma que engana ou convence. Sozinha em cena, faz uma triangulação com a projeção de imagens, com um timing que parece simples e casual – o que significa que foi muito bem construído. A cena faz um duplo com a vida.
O gesto de costurar sugere um desejo de permanência, como o gesto de escrever. Uma forma de deixar um rastro no mundo. Joana tenta afobadamente dar mais um ou outro ponto na vida, permanecer mais um pouquinho, até que, sem peso, se dá por satisfeita. Nós também fazemos e desfazemos coisas ao longo da vida, até que ela se acabe, até que a morte venha cortar o fio. A diferença talvez seja que nós, para a vida fazer sentido, alinhavamos as coisas umas nas outras, tentamos forjar narrativas contínuas. E queremos nos costurar no mundo, deixar nossas marcas.
A dificuldade de desapegar da vida aparece (propositalmente ou não) na dificuldade da atriz em encerrar a apresentação. O final se prolonga, podemos vislumbrá-lo bem antes que ele aconteça. E é nessa tentativa de prolongamento que vejo uma certa melancolia no espetáculo. No meio de toda a graça, humor, espirituosidade e técnica, entrevemos nosso medo da morte. No entanto, isso não significa que A costureira seja uma obra sombria. Pelo contrário! Trata-se de um trabalho que nos faz olhar generosamente para a vida. Mas a vida ali apresentada não é como uma grande narrativa de continuidade e sentido (como seria no drama, no caso do teatro), e sim como sucessão de números de palhaçaria, em que batemos cabeça com as coisas que inventamos. Uma sugestão, quem sabe, para lidarmos com a vida com linhas mais soltas, sem ter a agulha em riste, sem querer dar nó em todos os pontos.
Daniele Avila Small é doutoranda em Artes Cênicas pela UNIRIO, Mestre em História Social da Cultura pela PUC-Rio e Bacharel em Teoria do Teatro pela UNIRIO. Autora do livro O crítico ignorante: uma negociação teórica meio complicada (Editora 7Letras, 2015). É idealizadora e editora da revista eletrônica Questão de Crítica, integra o coletivo Complexo Duplo e a DocumentaCena – Plataforma de Crítica.