Um homem e um tronco de árvore. Não é preciso mais do que isso para que tenha início o espetáculo ‘Pelat’. Neste trabalho solo do artista catalão Joan Català, a base material é sucinta. Não existem truques ou ilusionismo. Obra pensada para a rua, ela não se vale de recursos de iluminação. Também não recorre a uma trilha sonora. Está descartado o uso de qualquer elemento que pudesse vir a mascarar – ou suavizar – o fato de que toda uma plateia está diante apenas desse artista e de seu único objeto de cena – um simples pedaço de madeira.
Durante toda a última década, Català esteve a trabalhar – como ator e acrobata – ao lado de companhias como La Fura dels Baus, La Cosa Nuestra e Klezmer Circus. Trata-se de sua primeira obra solo. Mas ela é o avesso da solidão em cena. Se não é preciso mais do que um homem e seu tronco para que o espetáculo comece, será necessário que um terceiro elemento tome parte nesse jogo para que a criação possa prosseguir e se concretizar.
A relação das criações em artes cênicas com seu público foi alvo de amplas reflexões nos últimos anos. A ideia de espectadores que se sentam para simplesmente fruir uma obra, à distância e protegidos pela caixa preta da sala de teatro, caiu um desuso. Ou passou a soar como vestígio de uma arte do passado. Essa participação de quem assiste com aquilo que vai ao palco, contudo, pode adquirir formas distintas. Da provocação ao convite para a intervenção direta.
No caso de ‘Pelat’, deve-se notar a peculiaridade do convite que se faz a quem está (inicialmente) de fora. Sua participação excederá as práticas de interação público /artista que se tornaram convencionais e banalizadas. E não porque a obra demande dessa plateia um tipo de ‘atuação’ específica. O que se pede ao espectador é trivial: que entre em cena, falhe para provocar o riso em quem observa, aprenda breves cantos, brinque como se em um jogo de crianças. A diferença da proposta está no significado da ação desse público, que não resulta nunca acessória, mas estrutural. Será só com o engajamento dos espectadores que o espetáculo ganhará forma e sentido. Aqueles que são levados à cena poderão inventar pra si um papel.
Inicialmente, Català estará sozinho com o tal tronco, a fazer graça com números de equilíbrio e de força. Mas sua demonstração de técnica não resvala em virtuosismo. O intérprete não está no lugar daquele que detém todo o poder. Seu engenho pode e deve ser compartilhado. Capazes de verdadeiramente tomar parte nas ações, os antes espectadores podem fazer exatamente o que aquele que se convencionou artista fazia antes. E o artista agora depende dele – homem comum – para estar em cena.
O que se coloca no horizonte não deixa de ser um manifesto por uma vida pré- industrial. Pelo menos, se entendermos a revolução das máquinas como uma forma de alienação do sentido coletivo do trabalho e da convivência. A hierarquização dos trabalhadores e a especialização do trabalho apartou os homens e cegou-os para aquilo que os une. A linha de montagem, tal qual preconizada pelo fordismo, visa à produtividade, à eficiência, à construção de um mundo de consumo de massa. Se cabe ao trabalhador apenas uma pequena parcela do ciclo produtivo, é natural que o objetivo final deixe de estar na construção de algo para se concentrar na execução de tarefas específicas.
Para aqueles que tomam parte na encenação, o pensamento utilitarista terá que ser revisto. Não adianta mais que eu pense na engrenagem que me cabe, em qual peça na linha de montagem, em como serei mais eficiente e produtivo. Preciso estar atento a parte, sem nunca perder o sentido do todo. Devo suportar um pedaço do tronco de madeira, mas usando uma quantidade de força que me permita entrar em equilíbrio com quem está ao meu lado. Prestar atenção no todo é prestar também atenção ao outro. É tratar de suprir as suas deficiências, é trabalhar para aquilo que esse outro não pode fazer, é assumir o seu melhor e colocá-lo a serviço de um propósito comum. Catalá trata disso sem retórica ou teorias sociológicas. Apenas busca um aplauso que se possa repartir e exceda a sua figura individual.
Maria Eugênia de Menezes é jornalista e crítica de teatro do Caderno 2, do jornal O Estado de S.Paulo e do site Teatrojornal – Leituras de cena. Formou-se em jornalismo pela USP, com especialização em Teoria Literária e Literatura Comparada. Trabalhou no Centro Cultural São Paulo e na Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. Atuou na Folha de S.Paulo, entre 2007 e 2010, escrevendo sobre artes cênicas. Participou de livros e atuou como curadora de programas, entre eles o Circuito Cultural Paulista e o Circuito São Paulo de Cultura. Foi membro do júri de premiações como Prêmio Bravo!