Página Inicial · Críticas : Dançando fronteiras

B-orders, o trabalho da dupla palestina Ashtar Muallem e Fadi Zmorrod (da Escola Palestina de Circo) é, em síntese, uma dança das fronteiras. E não apenas “nas” fronteiras.  Os jovens performers mobilizam no espetáculo técnicas de equilibrismo, contorcionismo (de solo e aéreo) e usam aparelhos  como o mastro chinês e o tecido. O eixo para que o repertório técnico se expresse em narrativa vem, entretanto, da dança. É  uma coreografia amparada em elementos circenses cujo título em inglês remete tanto às margens imediatamente intuídas, aquelas que envolvem a questão palestina, como, mais adiante, às bordas da própria criação artística, aqui alargadas em materiais e misturas. A sequência entre tema e forma é umbilical, de maneira que toda a discussão sócio-política do espetáculo ganhe a cena por meio de uma dinâmica em que norma e invenção, disciplina e desobediência, convenção e ruptura encontrem  nas variações físicas dos corpos no espaço as traduções peculiares do enfrentamento.

Podemos dizer que o centro do espetáculo são os conflitos em torno da alteridade quando vistos em um plano local. É assim que descobrimos que as contingências e vigilância impostas pelos israelenses (que também estão lá,  por vezes em imagens dramáticas) não são o núcleo da encenação. O deslocamento do ponto de vista interessa porque é algo relativamente inusual e, sobretudo, porque recupera em um lance ético corajoso outros aspectos da discussão sobre o reconhecimento da diferença. Logo percebemos que o espetáculo elege e se projeta melhor em um  contexto específico: o da micropolítica traçada em códigos de comportamento que têm raiz e se desenrolam não só no indefinido território físico como também no amplo imaginário social dos palestinos. Não à toa a dupla teve que refazer cenas, em função da recepção hostil de parte de seus compatriotas.  Era condição para continuar apresentando a montagem.

Uma pergunta que salta  e que tem a ver já com a circulação deste trabalho  mundo afora é que vivemos um tempo de estetização e espetacularização de todos os aspectos da vida e suas relações, inclusive na área da criação artística, lugar de onde se fala. No momento em que a montagem circula há de se observar a  capacidade de sobrevivência do seu plano de pensamento em diferentes praças mundiais. Por potente, honesta,  formalmente rigorosa que seja, a obra resiste ao enquadramento e à tipificação?

Um indício de que a questão é relevante ocorreu quando do encontro dos artistas com o público, na apresentação da estreia brasileira.  Sem demérito ao que foi  ali colocado pela plateia, em geral não nos pareceu que os dispositivos estéticos singulares do espetáculo foram capazes de mobilizar os olhares para uma discussão sobre a alteridade que alcançasse espelhamento com outras situações em que tensões políticas e culturais pudessem ser conectadas. Em outras palavras, uma das fronteiras fundamentais a serem borradas,  esta da percepção sobre as relações possíveis com outras formas de vigilância e punição, permaneceram praticamente intactas. Talvez  esse seja um ponto de chegada exigente. Mas, certamente não está fora da perspectiva que o espetáculo oferece.

De um modo ou de outro aqui se aponta, sem prejuízo ao belíssimo trabalho dos dois jovens, que se não há um problema com a obra em si, certamente há  com a demasiada domesticação do nosso olhar para as experiências de exceção. Em um mundo de simplificações absolutas da linguagem no qual, entretanto, não há contrapartida no incremento dos sentidos; ou seja, em um mundo no qual  articulamos as formas do dizer em uma sintaxe cada vez mais enxuta porém nem sempre mais complexa, o trabalho de Ashtar e Fadi tem ainda essa função importante: a de nos oferecer uma síntese poética da vida que se apresenta como exceção à norma, alargando mais esta fronteira, a das possibilidades de ler a arte. Um vocabulário de gestos enxutos, precisos, mas não superficiais. Uma plataforma  de onde podemos partir para enxergar o outro  amplamente. Um desafio na contramão  do nosso aprendizado diário e das nossas lições  de redução e tipificação do mundo. Que tendem não só a delimitar cada vez mais os territórios em geral como também delimitar o nosso mundo particular com a segurança suspeita dos departamentos que criamos para suprir nossa ilusão de ordem quando na verdade as fronteiras seguem sendo manchadas pelo andar do tempo, o tempo inteiro. Em alguma medida  é sobre isso  que o espetáculo, na sua bonita dança juvenil sobre as bordas,  nos diz.

 

Kil Abreu é jornalista, crítico e pesquisador. Pós-graduado em Artes pela Universidade de São Paulo (USP). Foi crítico do jornal Folha de S. Paulo. Dirigiu o Departamento de Teatros da Secretaria Municipal de Cultura/SP e foi curador de alguns dos principais festivais de teatro do país. Por oito anos foi mestre e coordenador pedagógico da Escola Livre de Teatro de Santo André. Atualmente é curador do Centro Cultural São Paulo. Mantém estudos sobre dramaturgia e teatro brasileiro contemporâneo.