Página Inicial · Críticas : Uma viagem pouco formativa

A volta ao mundo em 80 dias, espetáculo criado a partir do clássico de Julio Verne pelo Solas de Vento, parece se apoiar em dois eixos: o desejo pela inventividade na cena e um impulso formativo, ou seja, uma vontade de ensinar algo para o público infantil. Tanto pelos recursos técnicos usados na cena quanto pela abordagem discursiva e literária do projeto, vejo o trabalho muito mais como uma peça infantil de teatro do que de circo. Não digo com isso que o circo não possa ser narrativo, mas, para uma peça que está em um festival de circo, os elementos circenses são pontuais e tímido demais.

Num primeiro momento, chama a atenção a economia de meios na criação da visualidade da cena. Com poucos elementos e imagens capturadas por três câmeras, mixadas ao vivo, o espetáculo parece atraente pelo caráter artesanal da cenografia e pelos momentos em que os atores criam formas no chão que são capturadas por uma câmera instalada numa vara acima do palco e projetadas ao fundo. Mas fora esses breves momentos de imagens lúdicas, os efeitos visuais ficam prejudicados, pois a iluminação não joga bem com a projeção, de modo que a resolução das imagens projetadas fica comprometida.

No que diz respeito ao impulso formativo, os artistas mostram, no discurso, o encanto pelo novo, pelo diferente, pelo estrangeiro. Falam sobre como é interessante viajar, sair de casa, conhecer outros lugares. Mas essa ideia fica só no texto. A cada país, o interesse pela viagem arrefece. O tratamento dado aos lugares é sempre o mesmo: enumeram pratos típicos, projetam imagens estáticas e sem encanto, fazem graça com referências para os adultos, como a citação à canção Índia, famosa na voz de Gal Costa, que um ator recita quando chega na Índia, ou a piada com medicamentos tarja preta. A beleza e o encantamento com os diversos lugares do mundo que foram verbalmente anunciados não aparecem.

Em oposição à vontade de viajar, o objetivo do vilão é fazer as pessoas ficarem paradas. O antagonista traz uma série de clichês moralistas, como os malefícios do videogame, da televisão e da batata frita, que “é um veneno”. Com isso, a peça assume uma relação vertical com as crianças, enquadrando-as numa posição de quem não faz nada certo. O protagonista anda na mesma via com o bordão “vá arrumar o seu quarto”. O impulso formativo se mostra enfim um teatro de dedo em riste e lições de moral.

Mas o teatro não é a priori melhor que a televisão ou o videogame. Uma peça pode ter maus exemplos de comportamento e reforçar preconceitos. Por exemplo, a dinâmica entre os viajantes repete a velha relação patrão-empregado que pertence a certa tradição literária, mas que soa anacrônica hoje se não for elaborada com abordagem crítica. No entanto, o que parece bem mais sério é a passagem por um país habitado por índios, onde o patrão manda o empregado descobrir se os índios são do bem ou do mal. Índios do mal, cara pálida? Vivemos em um país em que tribos inteiras foram completamente dizimadas e a população indígena é agredida, hostilizada e tem seus direitos violados todos os dias. O teatro, o circo, o cinema ou qualquer arte precisa ter consciência de que está no mundo e deve ter responsabilidade sobre o que diz. A arte não é intocável, não está numa torre de marfim, não pode ser alienada. Muito menos quando se dirige ao público infantil.

A cena do protagonista golpeando petecas (que representam “um dois três indiozinhos”) com um cabo de guarda-chuva como se fosse um taco de golf é mais violenta que qualquer pancadaria de videogame. E vale apontar que videogame não é só pancadaria. Não se trata aqui de exigir o politicamente correto, mas de chamar atenção para a importância da consciência histórica e para o potencial formativo – possivelmente nocivo – das imagens numa peça infantil.

 

Daniele Avila Small é doutoranda em Artes Cênicas pela UNIRIO, Mestre em História Social da Cultura pela PUC-Rio e Bacharel em Teoria do Teatro pela UNIRIO. Autora do livro O crítico ignorante: uma negociação teórica meio complicada (Editora 7Letras, 2015). É idealizadora e editora da revista eletrônica Questão de Crítica, integra o coletivo Complexo Duplo e a DocumentaCena – Plataforma de Crítica.