Página Inicial · Críticas : Jogar o jogo da cena

A tomar por este “De partida” a Cia. Suno, formada pelo acrobata Duba Becker e a atriz Helena Figueira, vem de uma linhagem circense já passada no crivo dos cursos livres ou universitários onde se experimenta o repertório das técnicas existentes. As escolas, oficinas e eventos de circo, Brasil afora, têm hoje entre outros o importante papel de catalisar a experiência do circo tradicional, estudá-la, refazê-la e colocá-la em movimento à luz da época. São também espaços onde mestres e aprendizes se encontram, testam seus talentos e muitas vezes começam a trabalhar juntos. Sem demérito a toda a enorme, hoje indispensável colaboração que estes centros do saber circense têm oferecido, é fácil verificar aqui e ali um dos efeitos colaterais recorrentes desta formação mais sistematizada: o espaço da cena tomado como lugar de exibição do rendimento de determinada técnica.

Nste espetáculo, a despeito da boa empatia da dupla de artistas, a preocupação central que o desempenho na área do equilibrismo assume é evidente. O meio (a técnica) parece se confundir com os fins. E não haveria problema caso se tratasse apenas de uma sequência de números de equilibrismo e malabarismo (de, com, sobre objetos – livros, roupas, malas, etc). Mas, sem dúvida há também a intenção de instalar uma narrativa , simples que seja, uma dramaturgia possível. E no entanto o mote inicial, a situação de chegada e partida de dois sujeitos nômades, é apenas um pálido motivo para a exibição das habilidades em um roteiro que salta da cena rigoroso demais, com pouco espaço para que o espírito de improvisação tenha lugar e estimule o efeito de teatralidade. Esta dependência do efeito não da cena vista no seu conjunto, mas do desempenho técnico traz algum prejuízo à montagem. Primeiro porque apesar do excelente preparo de Duda Becker, eventualmente como sabemos as coisas podem não sair como planejado. E se não saem, não há plano B, o espetáculo segue fraturado.

Então talvez valha a pena pensar, quanto a isso, que uma das características mais curiosas e estimulantes na arte do palhaço – ou ao menos a daqueles palhaços que ainda não se deixaram ficar reféns das técnicas de atuação aprendidas hoje nas escolas – é a capacidade de fazer do limão uma limonada. Ou, nos mais espertos, de fazer do limão uma laranja doce. O improviso que marca o desempenho dos grandes cômicos não é, pois, coisa acidental, como pode parecer. É elemento organizador, articulador da forma, inventor de narrativas não dadas, que surgem por vezes no calor da hora, na relação direta com o que acontece em cena e as reações da plateia. Por vezes esta intuição para um jogo livre é capaz de fazer com que o mote de uma cena se desdobre com tal engenho que, lá pelas tantas ele abre portas para outras.

A impressão que se tem no andamento do espetáculo é que é preciso deixar a sua alma falar, que as situações sejam menos reféns de si mesmas, que sejam menos demarcadas, que deixem certo espaço de respiro livre no trânsito que se faz entre uma e outra ação. E que se pense nestes espaços não na negativa, como um “buraco”, mas como conexões e costuras em diálogo com aquela situação geral (a dos dois palhaços que chegam e logo mais vão partir). Visto assim parece um receituário pernóstico, como se houvesse uma forma correta de fazer. Entretanto, não são coisas exteriores ao que já está neste trabalho da Companhia. Tudo isso já está lá, só que a meio caminho. São planos intuídos na forma, mas não completamente desenvolvidos. Como abrir as janelas da cena, pois, senão para o improviso no sentido rigoroso – que não parece ser a intenção do grupo – mas para o seu espírito? Como fazer a situação teatral, suas motivações e tais, avançar mais sobre a sequência de números? Como fazer uma coisa orgânica à outra?

Não são indicativos de que o espetáculo seja ruim. Pelo contrário, todos acompanhamos com o prazer infantil que foi manifestado pelas crianças – pequenas e grandes – que estavam na plateia do Sesc Santana na apresentação do sábado. Trata-se, entretanto, de uma sintonia fina que certamente daria maior potência teatral ao já delicado empenho da Helena e do Duda em busca de um estado poético para a cena circense.

 

Kil Abreu é jornalista, crítico e pesquisador. Pós-graduado em Artes pela Universidade de São Paulo (USP). Foi crítico do jornal Folha de S. Paulo. Dirigiu o Departamento de Teatros da Secretaria Municipal de Cultura/SP e foi curador de alguns dos principais festivais de teatro do país. Por oito anos foi mestre e coordenador pedagógico da Escola Livre de Teatro de Santo André. Atualmente é curador do Centro Cultural São Paulo. Mantém estudos sobre dramaturgia e teatro brasileiro contemporâneo.