Haru, espetáculo de circo para o público infantil, aborda a relação mestre discípulo através da metalinguagem: trata-se de um espetáculo de mágica cujo tema é a própria mágica. Este pode ser um procedimento eficaz na formação dos pequenos espectadores. A familiaridade com os procedimentos da técnica (mesmo sem a revelação dos seus segredos) e com os meandros do processo de tornar-se mágico pode contribuir para enraizar na criança o interesse pelo circo, uma forma de criar vínculo. A cada vez que ela vir um mágico em cena, pode imaginar a trajetória que o levou até ali e identificar-se com isso.
Um dos encantos da peça é o apelo à cultura oriental, feito a partir de uma ideia geral de Oriente, com referências diversas, afinal, não é intenção da peça apresentar uma tese sobre o assunto. A atmosfera é fantasiosa, criada por uma visualidade bem cuidada, sem excessos, pela iluminação de Eron Villar, pela cenografia e figurino do diretor Marcondes Lima. O cenário é inspirado nas tendas da feira da cidade de Caruaru e de feiras de países como Japão e Marrocos. A técnica na execução dos figurinos (Maria Lima) colabora para trocas rápidas do mestre, importantes na ideia de passagem do tempo em uma parte significativa do espetáculo. A trilha sonora de Marcelo Sena é decisiva na construção desta atmosfera, pois cria um isolamento da tenda do mestre, como se o “lá fora” fosse um espaço ermo e vazio (em contraste com o ambiente acolhedor do espaço interno) e, em alguns momentos, sugere que o alcance do poder do mestre se estende para além do pequeno recinto.
A dramaturgia entrelaça os números de mágica à narrativa, numa fusão de circo e teatro em que a distinção entre as categorias naturalmente se dilui. No entanto, não há na ficha técnica o crédito específico a este trabalho, apenas uma referência a Carla Denise como colaboração dramatúrgica. O equilíbrio dos toques de comicidade (a colaboração em linguagem cômica está a cargo de Fernando Sampaio) fica na medida para manter as crianças ao mesmo tempo descontraídas e atentas, o que também é um grande mérito dos atores mágicos, Sóstenes Vidal, o mestre, e Rapha Santa Cruz, o aprendiz, intérprete criador, diretor de ilusionismo e responsável pela concepção do projeto junto com Christianne Galdino.
O apelo ao Oriente sugere o encanto com o estrangeiro, com o desconhecido, e com a ideia de aventura – imagens interessantes para uma jornada de aprendizado. É interessante a proposta de apresentar ao público infantil uma relação mestre/discípulo tão diferente daquela que se vê mais comumente nas escolas. Não é raro que os professores quebrem a cabeça pensando em formas de estimular o interesse dos alunos. No começo do espetáculo, fica claro que a relação aqui é outra: o aluno precisa conquistar o interesse do mestre, para que este o aceite como discípulo.
Na peça, vê-se que é incondicional o respeito do aprendiz pelo mestre. O jovem Haru enfrenta os desafios colocados pelo mestre sem questionar a sua legitimidade. O isolamento da tenda também sugere a concentração de energia e atenção necessárias à conquista de um saber, ao domínio de uma técnica. O processo do aprendizado é dividido em etapas, que a dramaturgia entrelaça na continuidade de uma progressão, em que Haru experimenta diferentes sensações com relação a si mesmo e à sua capacidade de realização. O mestre o orienta a alternar leituras e experimentações, valorizando a teoria e a prática na mesma medida.
Simbolicamente, o mestre devolve ao aprendiz a sua voz, que ele havia tirado logo no início, quando esta não passava de grunhidos agudos. Haru agora tem a sua própria voz e enfim a capacidade de articulação. Ao fim da jornada, entendemos melhor a complementaridade na relação entre os dois e o espetáculo apresenta com delicadeza a passagem em que o aprendiz recebe o reconhecimento e a responsabilidade de seguir sozinho, de “matar” o mestre.
Daniele Avila Small é doutoranda em Artes Cênicas pela UNIRIO, Mestre em História Social da Cultura pela PUC-Rio e Bacharel em Teoria do Teatro pela UNIRIO. Autora do livro O crítico ignorante: uma negociação teórica meio complicada (Editora 7Letras, 2015). É idealizadora e editora da revista eletrônica Questão de Crítica, integra o coletivo Complexo Duplo e a DocumentaCena – Plataforma de Crítica.