O antagonismo no espetáculo da companhia portuguesa Erva Daninha é representado por dois movimentos dramatúrgicos que recuam do verbo em prol da gestualidade narrativa dos números circenses. A palavra é diminuta perto do apuro técnico na construção de imagens e de ideias que falam do mal-estar contemporâneo nas relações fixadas pelo consumismo.
A dramaturgia não faz parte da ficha técnica, sob o guarda-chuva da criação conjunta dos intérpretes, mas é nesse percurso antropológico de Última aduela, entre a integridade e a corrupção do ser que o espectador enxerga também o design da tábua do título, a aduela, a interligar a base e o tampo nos barris ou tonéis.
Para um país culturalmente regado a azeite e vinho a metáfora é provocadora e passível de leitura na roda-viva dos desígnios capitalistas mundo adentro e afora. E sem a mera estratégia maniqueísta.
O estilhaçar desses recipientes, com as ripas em posições côncavas e convexas, dispostas no espaço cênico desde o primeiro instante – lembrando uma instalação –, o diretor Vasco Gomes e a equipe trazem questionamentos endereçados claramente às contradições da União Europeia.
Conforme esse pêndulo, a primeira parte sublinha o silêncio, o equilíbrio. A segunda, excêntrica, denota o caos generalizado, a inquietude. Em ambas, o desempenho artístico demanda muita concentração (mental, física e espiritual) para operar com objetos, figurinos e adereços essenciais aos números circenses, além de não perder o timing do olhar do público.
Jorge Lix inicia o espetáculo com o malabarismo sutil das bolinhas brancas repousadas nos ventres das aduelas espalhadas pelo cenário – como as ervilhas deitadas nos ramos onde crescem. O corpo magro e miúdo de Lix entrega a figura de um homem interiorano cujos sentidos forram educados pela natureza que o envolve. Ele flana em cena sem demonstrar qualquer esforço nos graus de dificuldades que se coloca ao jogar com as bolinhas incluindo outras partes do corpo e até um cesto de vime como suporte.
O idílio campestre, digamos assim, é reafirmado pela presença da mulher costureira (por Inês Mariana Moitas), com suas roupas no varal e o vestidinho de uma criança que estaria por vir ou já teria ido. A tonalidade bege dos tecidos e a trilha musical harmônica endossam o ambiente frugal, harmônico, transformados a partir da segunda parte demarcada pela chegada de um segundo homem.
André Borges responde pela ruptura moderna ao introduzir sua figura engravatada que adentra arrastando um grande cesto de plástico, normalmente destinado a lixo, além do monociclo no ombro. A música acompanha a batida de suas ações no desalinhamento das tábuas, na insolência para com o casal. Quando ele destampa o balde e tira de lá alguns vestidos da noite, coloridos, vem a sequência em que a sedução se impõe e a mulher é abduzida pelo frenesi bem capturado pela mágica da troca de roupa instantânea (recurso do “quick change”). Até que a derradeira figura deflagrada por Inês Mariana surge montada de dourado, peruca vermelha e óculos espelhados. É ela quem coloca a palavra na pista, carnavaliza a superficialidade, avança por entre os espectadores, vindo a se metamorfosear em outra voz, agora nas cores pretas, a duvidar “se o homem modifica a vida ou se a vida modifica o homem”, evocando o filósofo e poeta Agostinho da Silva.
Do bucolismo ao desencantamento, a Erva Daninha semeia a fé na arte do circo para indignar-se com o estado de coisas nos níveis da aldeia e do planeta. Seu princípio é de que menos é mais.
Valmir Santos é jornalista, crítico e pesquisador de teatro. Idealizador e editor do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Escreve desde 1992 em publicações como Valor Econômico, Bravo!, Folha de S.Paulo e O Diário de Mogi. Acompanha festivais no Brasil e no exterior, tendo assinado curadorias ou consultorias para encontros em Recife, Belo Horizonte e São Paulo. Autor de livros ou capítulos com históricos de grupos. Mestre em Artes Cênicas pela USP.