Página Inicial · Críticas : No meio do caminho

Saltimbancos, mambembes, ciganos, não importa, os artistas populares itinerantes têm lugar cativo na ancestralidade do circo em passagens por feiras, praças, campinhos e outras áreas do interior ou das periferias nos grandes centros. Num país continental como o Brasil, eles continuam cumprindo uma missão que lhes é cara: levar arte a cidades, povoados, vilarejos ou bairros remotos. Houve experiências antológicas, como a do Circo Nerino (1913-1964), ou aquela retratada ficcionalmente no filme Bye bye Brasil (1979), de Cacá Diegues, em que a trupe Caravana Rolidei cruza a Floresta Amazônica e o sertão nordestino.

O roteiro de As voltas que o mundo dá! tangencia essa quimera. A dramaturga Claudia Vasconcellos (conhecida em São Paulo por peças voltadas aos públicos adulto e infantojuvenil, pesquisadora da obra irlandês Samuel Beckett) emenda números em que o casal de artistas Serafim e Serafina circula de cidade em cidade. Caminho atravessado por encontros e situações que os afetam. Homens e mulheres também artistas, solitários, românticos. Motes para emplacar doses de humorismo e de lirismo, mas nem sempre efetivadas na costura da dupla ou mesmo na execução dos números pelos demais integrantes ou convidados da Cia. K, parceira da Cia. Cabelo de Maria – esta da seara musical, encorpando trabalho paralelo da sua Pequena Orquestra Interativa, a Poin.

A estreia do espetáculo no âmbito do Festival, no Sesc Itaquera, mostrou dispersão no modo de contar essas histórias, de dar a ver uma linha épica insinuada pelo roteiro, à la filme de estrada, um “road circo”, quem sabe. Ainda falta ritmo às cenas por ora, e por paradoxal, plenamente conduzidas pelo septeto de instrumentistas. São a flauta, o violão, o saxofone, o acordeão, o violino e a percussão de músicos como Renata Mattar e Gustavo Finker que sustentam o ar da graça com sua charanga do avesso, o astral de banda de coreto e remissão às trilhas do compositor italiano Nino Rota. Um luxo de atmosfera que destoa da apresentação em seu conjunto (contextualizando que se trata da primeira sessão desse ajuntamento).

Um aspecto que pode ter sido determinante na insegurança percebida em boa parte dos artistas era lidar com a estrutura do tablado que comporta torres para suportar números aéreos. A tensão dos contrarregras ou dos próprios parceiros de cena incumbidos de subir ou descer os cabos de aço ou cordas, conforme os números, interferia na qualidade da presença do Serafim de Kiko Caldas, também ele diretor (ex-integrante, por mais de vinte anos, e cofundador do Acrobático Fratelli, referência em circo de grupo). Parecia preocupado em ciceronear o todo, a nau, deixando em segundo plano a tarefa de narrador, no timão, a singrar os ires e vires com alguma rabugice ou algum carisma. Não relaxava mesmo quando ele e a companheira de jornada entalavam numa impagável banheira móvel. Já a Serafina de Celia Borges surgiu vetorial com sua veia palhaça, mantendo o vínculo com a plateia tomada por crianças em meio a adultos. Pena que o microfone de rosto a maltratou do início ao fim, falhando e crispando sua voz.

A mesma estrutura que pede familiaridade e temporalidade dos intérpretes propiciou um dos momentos mais singulares da tarde. Parte dos músicos postados ao fundo avançou para o tablado e foi içada por cabos de aço regulados pelos corpos de outros artistas dependurados em cada uma das quatro torres. Um recurso misto de singeleza e complexidade, tradutor dos potenciais que ambas as companhias dispõem para colocar em simbiose.

Os solos de Veronica Piccini no trapézio e de Guilherme Sampaio evoluindo no chão com a prática chinesa “fei cha” (tridente ou garfo voador), manipulando um bastão por várias bases do corpo, também responderam pelos números circenses mais inspirados, entre acrobacias, malabares e outros. As cores vivas e geométricas dos figurinos de Daniela Garcia casaram bem com os traços contemporâneos de As voltas que o mundo dá!. Mimetizaram o quanto tanta destreza junta pode render no jogo dessas companhias.

Valmir Santos é jornalista, crítico e pesquisador de teatro. Idealizador e editor do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Escreve desde 1992 em publicações como Valor Econômico, Bravo!, Folha de S.Paulo e O Diário de Mogi. Acompanha festivais no Brasil e no exterior, tendo assinado curadorias ou consultorias para encontros em Recife, Belo Horizonte e São Paulo. Autor de livros ou capítulos com históricos de grupos. Mestre em Artes Cênicas pela USP.