Em meio a uma grade de programação que olha para o contemporâneo e, consequentemente, para aquilo que convencionamos chamar de ‘novo circo’, a estreia de ‘Charivari Brasileiro’ vem dar testemunho de um repertório tradicional – ainda que subvertido em sua forma de apresentação. No espetáculo, dirigido por Rodrigo Matheus, apresenta-se uma seleta de números defendidos por integrantes de escolas de circo ao redor do País. Charivari quer dizer desordem, balbúrdia. Dentro do contexto circense, esse é o modo de se denominar o momento final dos espetáculos, aquele em que todos os artistas entram no palco, oferecem uma curta amostra de suas habilidades e saúdam o público.
Na montagem em questão, o título dá conta do caráter de celebração e do formato escolhido. Celebração, aliás, pode ser tomada como palavra-chave para entendermos aquilo que vai à cena. Fundador e diretor do Circo Mínimo, Matheus é também militante dessa linguagem artística, sempre envolvido nas ações que visam à sua afirmação e ao desenvolvimento do setor. Durante cinco anos, esteve ligado à Central do Circo, projeto que, de certa maneira, como nos esclarece o texto do programa do festival, ensejou a criação deste ‘Charivari Brasileiro’. Após uma breve apresentação coletiva, com a reunião de todos os integrantes, o espetáculo cumpre dar uma amostra do trabalho feito em sete escolas: Escola Circo de Diadema, Escola Circo de Londrina, Escola Nacional de Circo do Rio de Janeiro, Escola Pernambucana de Circo, Galpão do Circo, Picadeiro Circo Escola e SP Escola de Teatro, que vem trazer malabares, trapézio, palhaços, perna de pau e acrobacias.
Se o espetáculo emula a estrutura dos circos de lona, com sua sucessão de números, não seria justo alimentar a expectativa por uma dramaturgia que oferecesse norte ao que é encenado. Ainda que carregue a assinatura do Circo Mínimo, reconhecido pela forma como conjuga o circo e o teatro, trata-se, sobretudo, de um espetáculo de variedades, em que cada quadro preserva sua independência e pertinência. Nesse contexto, o desejo de ver um corpo único no palco foge às prerrogativas do próprio gênero. Porém, a inexistência de quaisquer pontos de contato entre o que foi selecionado e a falta de preocupação com a maneira de enfeixar os números emprestam à montagem um ar de ‘vitrine’. Elementos como a trilha sonora ou o figurino, se tivessem entrado no rol de preocupações da direção, poderiam oferecer certa unidade – ou, ao menos, um fluxo que soasse mais natural aos olhos da plateia.
Na apresentação com pernas de pau, a dupla oriunda do Recife surge ao som de canções do ‘Grande Circo Místico’, disco de Edu Lobo e Chico Buarque. Já no número cômico da SP Escola de Teatro, com uma espécie de clown malabarista, um acordeom evoca a chanson française. Difícil encontrar qualquer ponto de contato entre esse universo e o das melodias do universo pop mais desgastado que transpassam as outras criações. Dentre as modalidades aéreas, pode-se mesmo observar que os números com tecido e o de uma lira dupla encaminham-se para uma estética de show de variedades televisivo ou de cabaré.
Tudo isso para dizer que é difícil também lançar um olhar uno ao que se descortina desigual. Se, no caso da lira, as moças de Diadema exibem técnica e controle, o mesmo não se poderia dizer da dupla com a perna de pau – que compensa o que lhe falta em domínio com carisma e bom jogo com a plateia. A figura ingênua do palhaço, com suas quedas e confusões, também vai por essa trilha, conseguindo comunicar-se muito bem com o público, seja adulto, seja infantil. O caráter de vitrine traz inevitáveis fragilidades. Mas pode cumprir um papel significativo. A proposta de olhar para o que está em gestação nas instituições de ensino Brasil, especialmente se o apresentado for colocado em fricção com o restante do festival (um conjunto de criações de outros dez países), ajuda a descortinar potencialidades, gargalos, e, sobretudo, a necessidade de uma política que ampare e impulsione o setor.
Maria Eugênia de Menezes é jornalista e crítica de teatro do Caderno 2, do jornal O Estado de S.Paulo e do site Teatrojornal – Leituras de cena. Formou-se em jornalismo pela USP, com especialização em Teoria Literária e Literatura Comparada. Trabalhou no Centro Cultural São Paulo e na Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. Atuou na Folha de S.Paulo, entre 2007 e 2010, escrevendo sobre artes cênicas. Participou de livros e atuou como curadora de programas, entre eles o Circuito Cultural Paulista e o Circuito São Paulo de Cultura. Foi membro do júri de premiações como Prêmio Bravo!