Um memorial dedicado a uma queda, descreve o diretor Olle Strandberg sobre Underart, espetáculo criado a partir de sua experiência pessoal, um acidente em um salto, que o deixou paralisado do pescoço para baixo por algum tempo, até que retomou os movimentos e voltou a trabalhar como diretor. A queda, a falha, o divisor de águas da sua vida é o ponto de partida para a criação do espetáculo do Cirkus Cirkör.
Pergunto-me, a título de curiosidade apenas, como seria assistir ao espetáculo sem esse norteador de sentido. Penso que o espetáculo pode prescindir de qualquer preleção, que ele também é autônomo, fala por si. No entanto, ter a imagem assustadora da imobilidade de um acrobata como filtro diante daqueles corpos de movimentos imensos é algo que tensiona como possibilidade e alivia pela ideia de superação. E o fato de que a obra é feita a partir de um legado de experiência, ou seja, que ela tem os pés firmes em um determinado chão, um contexto específico, que é consciente de sua historicidade é algo a se oferecer aos espectadores – de modo geral, como um gesto de generosidade. Há por aqui uma cultura geral de relação imediata com as obras de arte, imediata no sentido de “sem mediação”. As mediações, a meu ver, são bem-vindas.
Uma dificuldade da crítica: como falar do que ainda está na retina? A experiência com a imagem pede um pouco de silêncio. Daí uma sensação de incômodo da minha parte diante dos aplausos do público que de certo modo cortam o barato da experiência. O aplauso às vezes é como uma opinião emitida às pressas. E parece que estamos vivendo o momento da opinião súbita, como apontam alguns pensadores contemporâneos. O aplauso pontua, divide, quebra a possibilidade da permanência da atenção, de uma escuta do corpo, esvazia o acúmulo. De certo modo, cancela a contemplação. E a contemplação, ao contrário do que dizem as más línguas, não é inimiga da experiência. Mas os aplausos são de praxe. Eu, estrangeira no circo, que sinto o desconforto.
Em Underart, o tratamento dado a cada número tem algo de banal, como as pausas para o café, embora nada blasé. Uma das coisas que me dá essa impressão é o fato de que cada elemento da encenação tem a sua autonomia. A música, por exemplo, de Andreas Tengblad e Anna Ahnlund da banda Ripple & Murmur, convive em pé de igualdade com o circo e a dança, sem estar subordinada, sem servir a um ou outro momento. Não há nada que avise aos espectadores: “Vejam, agora vamos fazer uma coisa incrível.” Não há uma sintaxe de autocelebração.
Em determinado momento, dois performers executam uma partitura de movimento, que bem poderia ser uma coreografia em si. Em seguida, repetem a partitura, mas dessa vez com a participação de uma terceira performer, que executa movimentos acrobáticos os mais surpreendentes, ocupando espaços nos corpos dos outros dois que não estavam ostensivamente anunciados, mas apenas sutilmente apontados na movimentação anterior. Nessa breve passagem, é como se tivéssemos acesso ao processo, ao avesso, a um vislumbre de decupagem.
Essa sobriedade não é indiferença, mas, a meu ver, algo como uma operação de síntese (não definitiva) da autoconsciência da falibilidade do corpo, mesmo – e sobretudo – desse corpo que parece que tudo pode. Vejo Underart como uma biópsia do assombro diante do risco – da vida e da arte.
Me parece que o risco de que se fala textualmente no espetáculo não é apenas o da vida. O risco do cancelamento das habilidades e da autonomia do corpo, sem dúvida, reveste tudo ali com uma camada de assombro em convivência dialética com uma camada de beleza. Essa combinação tem tanto poder quanto o encantamento provocado pelo virtuosismo dos saltos acrobáticos, malabares e coreografias. Mas o risco da arte, naturalmente, também está em jogo. A autonomia das partes diz respeito a isso, ao improviso da forma, sua medida de originalidade – sempre sem fórmula, sem precedente, sem garantias. Como na vida.
Daniele Avila Small é doutoranda em Artes Cênicas pela UNIRIO, Mestre em História Social da Cultura pela PUC-Rio e Bacharel em Teoria do Teatro pela UNIRIO. Autora do livro O crítico ignorante: uma negociação teórica meio complicada (Editora 7Letras, 2015). É idealizadora e editora da revista eletrônica Questão de Crítica, integra o coletivo Complexo Duplo e a DocumentaCena – Plataforma de Crítica.