Página Inicial · Críticas : De cada um que deixa o circo-cabaré

“Lá fora a luz do dia fere os olhos”.
João Bosco-Aldir Blanc.

Parangolé foi o nome com que o artista plástico Hélio Oiticica batizou, nos anos 1960, o misto de capa, bandeira, estandarte e tenda que precisa ser “vestido e dançado” por alguém para revelar toda sua expressividade de obra de arte penetrável. Mas muito antes de atingir o estatuto de objeto de culto por parte de tropicalistas de fato e de direito, o vocábulo já existia na cultura popular do Rio de Janeiro – de onde Oiticica o retirou –, querendo significar “conversa fiada, lábia”. Assim, a conotação que o grupo carioca Teatro de Anônimo imprime à palavra em Noites de parangolé – travessia, apresentado neste 3º Festival Internacional Sesc de Circo, parece recorrer a ambas as acepções. A montagem não somente constitui uma forma híbrida entre o espetáculo, a festa e o cabaré; como também se apresenta como uma espécie de espetáculo-loquaz, disposto a jogar um pouco de conversa fora com a plateia.

Propondo uma mistura bem diversificada de números de circo, esquetes de humor (direcionados quase todo o tempo à interação com a plateia), projeções em vídeo e música executada ao vivo, a empreitada se sustenta por um constante clima de improviso, que impregna tudo de uma atmosfera de bem-vindo frescor. O espetáculo tem início já a partir da entrada do público, que aos poucos vai sendo acomodado, nas mesas e cadeiras espalhadas ao redor do galpão do Sesc Pompeia onde ele acontece, com a ajuda dos próprios artistas, na condição de anfitriões do cabaré. O clima é de descontração e de alegria. Todos os membros da companhia carioca e dos outros grupos especialmente convidados a tomarem parte na apresentação estão perambulando pelos espectadores ou executando ações para as quais chamam constantemente a atenção destes. Têm início, então, os números especiais – equilibrismo, malabarismo, palhaçaria, mágica, ilusionismo… – entremeados com algumas intervenções do mestre de cerimônias, que conversa franca e animadamente com a plateia. Assim, a noite vai transcorrendo entre uma base sensorial feérica e alguns dedos de prosa.

A estética visual do espetáculo – cenários, figurinos e adereços – prima por instaurar uma atmosfera de briosa decadência, típica do teatro de revista, que na cena brasileira configurou-se como um meio-irmão do cabaré europeu. A figura do palhaço que constantemente invade a cena acentua o lado grotesco da noite, oferecendo momentos lúdicos e lúbricos ao mesmo tempo. Trata-se de um bufão, o fanfarrão cômico, mas desagradável, de longa tradição na cultura do Ocidente. Outra forte figura em cena é a da noiva-equilibrista, cujo rosto estampa uma dimensão patética de contundente poder de sugestão, transformada em puro domínio sobre a corda bamba. A performer sai do ridículo e atinge o sublime em questão de segundos, mantendo um sorriso na face que é a mais arrematada eloquência corporal-sinestésica da arte do circo. Provavelmente este seja o ponto alto da noite, que dispensa ali comentários.

Alguns números encantam pelo virtuosismo. A dupla de malabaristas masculinos é um deles. Simpáticos, eficientes, inatacáveis no que fazem. Outros números atraem pelo domínio da técnica aliado à singeleza da realização, como no caso das trapezistas que se exibem logo nos primeiros instantes. Os dois irmãos palhaços logram momentos de muita empatia com a plateia – por suas figuras algo combalidas, por suas ironias ao rés-do-chão, por sua tagarelice subdesenvolvida. As coristas (infelizmente, pouco aproveitadas em suas habilidades individuais, à exceção do final) compõem um grupo de muita expressividade em cena, acentuando o caráter hiperbólico, exagerado, ruidoso, das formações coletivas. Quanto aos músicos, eles se sobressaem tanto na competência da massa sonora que produzem como na discreta função de coadjuvantes que exercem tão simpaticamente.

Somente duas parecem ser as notas dissonantes desta envolvente realização. A primeira delas diz respeito ao vídeo exibido antes de os números começarem. Absolutamente dispensável, dada a obviedade de suas imagens-vertiginosas e de suas palavras-motivacionais. A outra refere-se ao leitmotiv que orienta boa parte das falas do mestre de cerimônias: uma noite como aquela é mágica e transformadora. Cada um de nós ali, diante de artistas tão talentosos, já foi capaz de perceber isso. Então, que a noite transcorra com as manhas, malandragens e parangolés que o Teatro de Anônimo tem a nos oferecer. Mas sem muito trololó.

 

Welington Andrade é bacharel em Artes Cênicas pela UNIRIO e em Letras pela Universidade de São Paulo, onde também desenvolveu suas pesquisas de mestrado e de doutorado em literatura brasileira. É professor do curso de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero desde 1997. É autor de um dos capítulos da História do teatro brasileiro: do modernismo às tendências contemporâneas (Editora Perspectiva/Edições Sesc-SP, 2013). Desde setembro de 2013, é crítico de teatro da revista Cult.