Página Inicial · Críticas: Exercícios de imaginação em torno de um pequeno guarda-roupa

“O homem é a única criatura da terra que tem vontade de olhar para o interior de outra”.
Hans Carossa. Les secrets de la maturité.

Falsa escuadra, apresentado pelo grupo argentino Cia. Movimiento Armario, faz do despojamento um grande trunfo para a irrupção da arte do circo. Em torno de um pequeno armário de roupas e alguns poucos adereços, os dois artistas em cena – Fernando Rosen e Ivan Larroque – conduzem uma série de exercícios de imaginação que tiram muito proveito da proximidade com a plateia, produzindo uma atmosfera de lúdica intimidade igualmente fascinante para crianças e adultos.

Rosen e Larroque reproduzem o padrão das velhas duplas de figuras cômicas que se tornaram canônicas não somente no picadeiro (os palhaços Branco e Augusto), como também na literatura (Dom Quixote e Sancho Pança) e no cinema (o Gordo e o Magro). Boa parte da comicidade de tais duplas – conforme o público percebe de imediato – está assentada na exploração de um humor de tipo físico advindo da diferença de compleição que há entre eles. No caso aqui, uma figura é grandalhona, alta (Larroque), enquanto a outra é mignon, de baixa estatura (Rosen). Desta acentuada assimetria de “talhes” surgem, então, inúmeras situações engraçadas.

Ambos encarnam tipos muito simpáticos – bastante competitivos entre si, mas ao mesmo tempo ingênuos, tolos e atrapalhados o suficiente para ganharem a adesão irrestrita da plateia. Vale lembrar que as duplas cômicas circenses sublimam a agressividade e a violência que estão na base da convivência humana pela via do humor, convertendo disputa em escárnio, hostilidade em ridículo, exasperação em nonsense. Seria o caso de se perguntar por que determinado discurso de natureza política insiste no uso da imagem do circo com o sentido de balbúrdia geral, caos, desordem; quando na verdade o mundo da política poderia aprender com os artistas circenses que um homem que leva muito a sério uma contenda com seus semelhantes não passa, a rigor, de um indivíduo mesquinho, senão grotesco.

A habilidade técnica de Rosen e Larroque merece destaque. Os números de equilibrismo e malabares são executados com perfeição, arrancando dos espectadores, aqui e ali, as previsíveis interjeições que comunicam espanto e admiração. A música – a cargo de Luis Rodrigo Diaz Muniz – é utilizada quase que onipresentemente com o intuito de acentuar o lirismo da empreitada, uma vez que evoca as velhas trilhas sonoras do cinema mudo de Charles Chaplin, Buster Keaton e Harold Lloyd.

Entretanto, para além de todos esses elementos, Falsa escuadra extrai muito de sua verve da presença em cena de um objeto tão prosaico como um guarda-roupa, remetendo à técnica do teatro de objetos, vertente mais moderna do teatro de animação, que trabalha com objetos prontos, ready-mades, deslocando-os de sua função original (embora sem transformar a natureza deles), a fim de explorar uma série de novos significados que possam nascer desses usos. O verbete “Teatro de Objetos”, do Dicionário do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos (Editora Perspectiva/Edições Sesc São Paulo), afirma: “Há, em torno de qualquer objeto, uma aura de espaço físico criada pela sua presença, em que se constrói dramaturgia pela fricção (relação de corpos), gerando sensações e emoções diversas. Entre as inúmeras acepções se vislumbra a gama de situações em que ele se ‘presenta’ no espaço-tempo cênico. Posto em palavra, o objeto sofre ressemantizações. Feito matéria, ele é mostrado, consumido, animado, construído ou destruído. Converte-se em personagem, sofre metamorfoses, traz em si um caráter lúdico, simbólico, e opera deslizamentos metonímicos e metafóricos. O atuante joga com o objeto e faz-se objeto em cena, em distintos graus”.

O armário antigo que em momento algum sai de cena em Falsa escuadra é um grande brinquedo dotado de estrutura interna por meio do qual a Cia. Movimiento Armario convida os espectadores a também exercitarem sua imaginação, estimulando neles “essa vontade do olhar que necessita da profundeza do objeto”, conforme afirma Gaston Bachelard em seu famoso ensaio sobre as imagens da intimidade. E, mesmo com as portas abertas, a profundidade do guarda-roupa continua. O que a razão não sabe fazer, a arte realiza seja como for.

 

Welington Andrade é bacharel em Artes Cênicas pela UNIRIO e em Letras pela Universidade de São Paulo, onde também desenvolveu suas pesquisas de mestrado e de doutorado em literatura brasileira. É professor do curso de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero desde 1997. É autor de um dos capítulos da História do teatro brasileiro: do modernismo às tendências contemporâneas (Editora Perspectiva/Edições Sesc-SP, 2013). Desde setembro de 2013, é crítico de teatro da revista Cult.